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sábado, 24 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 20


.... A CARAVANA
.
Os homens batem-se furiosamente
entre ideologias e densas florestas
criando plataformas de lutas
com engenhos e forças letais
que lançam para as sarjetas
os valores dos nobres ideais.

São cenários secos e tenebrosos
por onde avançam buliçosos
os comboios de viaturas verdes
que sacodem a poeira das picadas
seguindo os destinos dolorosos
à procura da paz nas sanzalas
perdidas nos confins do mato
entre a última lufada de balas.

Cada soldado sente a noite quente
com a artilharia lançando fogo
prevendo um forte envolvimento;
os nervos duros e rostos tisnados
no olhar movediço de emoção
deixam o destino ao pensamento
que se adivinha desejoso de voltar
fora dos caminhos da destruição.

São correrias e saltos incertos
com gestos bruscos e confusos
dentro do cenário da guerra…
tantos actores descompassados
com destinos breves e difusos
passados bem longe da sua terra
entre florestas de todas as cores
de olhos abertos, colhem flores.

Nangade, Agosto de 1967
Joaquim Coelho
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.
.... TRILHOS DA GUERRA
.
Aqui… com os soldados
sinto que não tenho ninguém
que perceba o meu sonho irreverente
de contida esperança!

A fantasia que me é ingrata
só traz amargura e sofrimento
e as saudades do meu tempo de menino
quando a minha mãe dava o alento
para caminhar alegre e seguro
sem temer os tempos do futuro!

Agora… nos trilhos da guerra
com o corpo acabrunhado
e a alma triste e desalenta
ando por aqui entre o capim
galgando as matas agrestes
e arrastando a pesada mochila.

Ai, se eu pudesse contar as paisagens
e a verdura das árvores engalanadas
sentado, como de costume,
no regaço de minha mãe…
não teria estas lágrimas amargas
nos olhos baços e toldados
pela última visão da guerra:
a morte levou dois soldados
para as profundezas da terra.

Mas eu hei-de voltar
antes que seja muito tarde…
hei-de pisar outros caminhos
e os campos semeados…
as crianças terão os meus carinhos
e eu dormirei de olhos fechados.

Será uma chegada deslumbrante
que acalmará os mais indecisos
nesta missão triunfante…
até as formosos violetas
vão festejar a vitória desta ventura
que vai queimar as horas mais pretas
de toda a minha desventura!

Nangade, Julho de 1967
Joaquim Coelho

... CONVICÇÃO
.
Isto não é um infortúnio
é a desgraça
de estarmos numa guerra
que o tempo não aceita
e o mundo se opõe...

Num dia luminoso
não muito tarde
com sol radioso,
veremos os nossos irmãos
as nossas namoradas
as nossas mulheres
as nossas mães...
os nossos amigos
em qualquer lugar do destino.

Numa alvorada
que não está longe
nascerá a esperança...
a realidade dos sonhos
e a vida a florescer
como um imenso clarão;
projectos medonhos
hão-de nascer
com a força dum vulcão.

Tudo está dentro de nós
pronto a expandir
as reprimidas emoções
energias em turbilhões
que hão-de explodir
e espalhar a liberdade

Um dia
viveremos a mocidade.

Mueda, Setembro de 1967
Joaquim Coelho
«««««««««««««««««
.
... CANÇÃO DE AMOR
.
Um sonho indeciso e vago
procurando a vida em cada dia
no caminho onde divago.

A vida fechada na solidão
é fruto do néctar da flor bela,
do pensamento sai o clarão
onde fico a contemplar
o rumo da celestial estrela
que me deixa aqui a penar!

Nas trevas da noite indecisa
há uma sombra maravilhosa…
a saudade…. canção de amor
na longínqua África sequiosa
vem ouvir esta canção de dor,
vem colorida e formosa!

Nacala, Dezembro de 1966
Joaquim Coelho
.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 19


... CAMINHADA LONGA
.
Uma nuvem de causar pavor
obscureceu meu pensamento
mas logo senti o sabor
daquela água providencial
deslizando nos pelos do bigode;
os dias passados na mata densa
são horas de intensa agonia
transportando os soldados feridos
para as terras de Macomia.

A caminhada longa, longa…
deixa o pensamento embrutecido
e os corpos cansados e tensos
rasgam o tempo no silêncio
da impiedosa progressão
enquanto o breu da noite
provoca murmúrios de inquietação.

Os rostos desfigurados
confundem-se no negrume da noite
que os olhos fitam rumo ao norte
corpos débeis, quase esqueletos
escapam à sanha da morte.

Pelo amanhecer do horizonte
agitam-se os caminhantes danados
com os sinais do acampamento
em palhotas sem vedações
que nos hão-de dar o acolhimento
para descansar das privações.

Mueda, Março de 1966
Joaquim Coelho

«««««««««««
.
... CURANDEIRO
.
Hoje acordei sem réstia de memória!
senti uma tranquila paz
que me conforta dos dias amargos
e das ofensivas acções contra a história
deste tempo que não volta atrás…
a pátria sofre irreversíveis estragos.

Já não sinto a saudade...
dos afagos irrequietos duma mulher
nem sequer quero ir à cidade
onde se compra o amor que se quer.

Olho para o modesto cemitério
e vejo a morte em suspenso...
os mortos não estão enterrados
porque um avião de bom-senso
espera o embarque dos encaixotados.

Perante o infortúnio maldito
que se abate sobre esta geração
ouço os companheiros a desabafar
nas manhãs tranquilas, sem um grito
e sinto os amargos no coração
tantos que nos fazem chorar!

Envolvido neste espaço da bruma
com o silêncio… os gemidos de dor
e as bocas cheias de espuma,
vamos fomentar a paz e o amor
até ao clarear de qualquer dia
que nos envolva na serena alegria.

Caminho sobre o rumo da história
que uma pátria me anuncia
quando sinto despojada a memória
dos valores que a humanidade cria.

Agora que as mentes rasgam o mapa
dos encantados descobrimentos
pouco restará desta rude trapa
além das amarguras e tormentos:
mágoas nos corpos sofridos
que vão rasgando o pensamento
e as fráguas nos olhos humedecidos
rasgam espaço no rumo do vento.

Já pouco espero da trágica guerra…
dos olhos brotam as lágrimas tristes
que fazem desejar o regresso à terra
na convicção de que ainda existes.

É assim que eu iludo a memória
nesta vertigem das lágrimas perdidas
com os farrapos da nossa história
vamos curando as nossas feridas.

Macomia, Abril de 1967
Joaquim Coelho





... DEGREDO
.
Quiseram cegar meus olhos...
tentaram prender-me a língua!

Quiseram matar meu pensamento
quiseram que eu quisesse
matar a sangue frio...
quiseram que eu dissesse
que um homem é um macaco
e vive nas águas do rio!

Para não esquecer a verdade
disseram que esta guerra
é uma justa realidade...
- combater os pobres da terra,
espalhar infortúnio e desgraça
até tem alguma graça!

Manipularam os pensamentos
deformaram-me as ideias
até reprimiram as vontades...
quiseram-me atrás das grades
desterrado de corpo e alma!

Mas o meu grito sem peias
fez-se ouvir como um trovão,
- um grito vindo do coração...
eco timbrado nos desagravos
desta vida insegura...
guerra sem lei, obscura.

Vai longe o tempo dos escravos
nesta terra que lhes pertence
a promessa de mais fartura
a mim já não convence!

Macomia, Abril de 1967
Joaquim Coelho
#########
.
...CANTEIRO DE FLORES
.
Bem entendi o mistério
A desfilar nos teus olhos
E percebi o teu critério
Com muitas flores, aos molhos,
Muitas cores em movimento
A seduzir o meu pensamento.

Quis entrar no teu canteiro
Colher flores imaginárias
E cantar-te por inteiro
As melodias extraordinárias
No teu ventre percutidas
E intensidades interrompidas.

Continuámos os movimentos
Na leveza dos seios de veludo
Estremeciam os sentimentos
Com a magia do amor puro
Saciado no gozo infinito
Daquele enlace doce e bonito.

Beira, Março de 1967
Joaquim Coelho

Lembrar Início da Guerra

Para que a memória não esqueça...


.. DESEMBARCADOS

Ah, como é medonho
o sofrimento dos soldados
que mandaram para o planalto…
abandonados!

Privados do imaginado sonho
de darem o salto
como o fazem os desertores
em demanda do sustento;
ou como os exilados e traidores
à deriva do cata-vento.

Os navios deixam-nos na costa
(Porto Amélia ou Mocímboa da Praia)
já com saudades da catraia,
sempre crentes na aposta
da longínqua ideia difusa
do regresso à pátria-lusa.

Habilidosos no desenrasca,
não se afoitam em valentia
por saberem que qualquer dia
a caravana se atasca.

Vivem tempos de privações
cercados de arame farpado
em dias de intensas aflições
com o inimigo marafado.
Sentem o desconforto do abrigo
que os protege da morteirada
e da metralha do inimigo
que ataca pela alvorada.

Mas… o que mais entristece
é ver tombar um companheiro
cujo corpo arrefece
à sombra do embondeiro.

Sinto a violenta combustão
da alma que reclama
contra a ingrata humilhação
do sono em tosca cama
- uma sepultura sem caixões
feita pela lua cheia
onde os corpos esfacelados
pelas explosões
são embrulhados
na tenebrosa teia.

Vou deixar de pintar a realidade
e juntar-me aos que vivem às escuras
longe das noites inacabadas.

Sim… vou fechar os olhos e deixar
que a lua mostre a verdade
da vida dentro das barricadas
com a saudade a mastigar
o que resta da alma pura…
onde, sem dó nem piedade
esperamos a última amargura.

Mueda, Novembro de 1967
Joaquim Coelho
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segunda-feira, 19 de julho de 2010

Poemas dos Tempo da Guerra 6

.
.... FATALISMO
.
Vou partir para o mato!
na despedida não tenho ninguém
a dizer adeus…
olho á volta e fico espantado
com os apetrechos de guerra
horrorosos e desoladores,

os camaradas fumam despreocupados
sem se darem conta desta agonia
que nos causa melancolia.

É uma madrugada cacimbeira
os aviões roncam estrondosamente
com os motores potentes
e acordam a cidade sonolenta…

de dentro do avião que corre veloz
e levanta o focinho para o norte
deito um último olhar à base
e vejo as máquinas ferozes
de silhuetas sombrias
prontas a transportar a morte!

Começo a ficar indiferente
às coisas boas da cidade
que vai ficando cada vez mais longe…
faço parte deste cenário
onde companheiros de brumas
puxam lufadas de fumo
espalhadas no avião mercenário.

O meu último bocejo de esperança
faz-me parecer um corsário
nos meus tempos de criança!

Negage, Março de 1962
Joaquim Coelho
########
.
... NOITE INFERNAL
.
Esta mágoa em noite de cacimbo
martela lentamente o pensamento
no instante em que ruge o avião
partindo o silêncio com estrondo...
as bombas vomitando o fogo
que a combustão do napalm espalha
nas aldeias de fantasmas famintos
onde morrem todas as esperanças
da gente pobre e franzinas crianças
que tentam fugir de qualquer jeito
- vergonha da pátria sem o proveito!

Meus olhos brilharam de espanto
ao verem a sanzala em chamas.
ali sufocadas no calor das labaredas
estão as crianças de choro abafado,
bombas a rasgar sulcos nas veredas
por onde se arrastam os corpos
queimados num sofrimento danado.

Quando a consciência salta o orvalho
Por um lapso de tempo vejo o inferno
com as bombas riscando os céus...
o rebentamento de efeito medonho
rasga as palhotas com gente dentro
e o aniquilamento daquela sanzala
deixa-me preso à sequência da morte
com a garganta presa e sem fala.

Um cheiro intenso ataca as narinas
perdendo a seiva nas balas de fogo...
diluiu-se o medo do alastramento
de tantas queimadas feitas à toa,
o absurdo é de quem manda no jogo
está muito longe, talvez em Lisboa!

Onzo, Julho de 1962
Joaquim Coelho.

.
... INCERTEZA
.
Dor amarga na languidez do mundo
que tolhes o espírito benevolente…
deixa caminhar o corpo moribundo
causticado pelo vento das nortadas
vindo da lonjura das montanhas
engalanadas de sonhos perfumados;
deixa-me descobrir a solidão
que vai entrando pelas frestas
e castiga os pobres do sertão.

De Nambuangongo a Quicabo
os caminhos em declive sinuoso
deixam as poeiras tresmalhadas
asssombrar os horizontes distantes
onde disfarçamos esta agonia
dos sulcos na carne esfacelada
movida nos gestos comunicantes
dos combates em cada novo dia.

Afagando a espingarda em riste,
as mãos sentem os espinhos
cravados na dor longínqua
que se dissolve em torvelinhos…
o rosto coberto de pó, desfigurado,
segura os laivos de esperança
que trazem o coração aconchegado
aos meus sonhos de criança!

Quicabo, Julho de 1962
Joaquim Coelho
»»»»»»»»»

ENSEADA

A noite vem devagar…
ao longe
estão as enormes queimadas
majestosas labaredas a brilhar
desfazendo o capim descuidado!

Oiço além as batucadas
do chingufo a murmurar
marcando a magia do feitiço
que mexe as vidas trocadas
e só a saudade faz sonhar
com o fim de tanto enguiço.

Na enseada já vejo um navio...
a esperança do meu desejo
é navegar até ao tempo frio
levando comigo o último beijo.

As estrelas ficam nos teus olhos
como eu ficarei em ti
brilhantes como as lantejoulas
dos outros sonhos que já vivi.

Luanda, Janeiro de 1963
Joaquim Coelho

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 18


... TEMPO INCERTO
.
Estamos num tempo de temores!

Tempo de acção e sofrimento
tempo de consolidar os valores…
tempo de entender os sinais do vento.

Este tempo da guerra e da fome;
tempo de miséria e de choro
tempo de gente que não come…
tempo de luta contra a opressão
onde o combate perde o decoro
e a vida está na palma da mão.

Tempo de avançar no rumo certo
enquanto a juventude está forte:
tempo de abraçar o que está perto
e deixar as estradas da morte…
tempo da geração comprometida
com a liberdade presa, perdida.

Estamos no tempo sem tempo
para saborear as delícias da vida!

Nacala, Dezembro de 1966
Joaquim Coelho
»»»»»»»»»»»»»»»»»»»
.

...... CONVICÇÕES
.
Só comigo o mundo não vai mudar!
mas sei que há outros iguais
vivendo em qualquer lugar
e convictos dos mesmos ideais.

No tempo de qualquer dia
há-de ocorrer um grande feito
que me encherá de alegria:
vai-se demolir a prisão
que trago dentro do peito.

E logo virá nos jornais:
acabou-se toda a nossa ansiedade,
os combatentes não morrem mais
chegou a almejada liberdade!

Nacala, Dezembro de 1966
Joaquim Coelho


.
.. INFERNO EM MITEDA
.
Jamais posso esquecer a bomba
que rebentou contra o cajueiro
e o estrondo que abafou o suspiro
que do soldado foi o derradeiro;
o corpo esfacelado, sem um grito,
indiferente ao estampido dos tiros,
ficou na transparência da sombra
onde explodiram as granadas…
com o horroroso grito de guerra
bem presente no vale de Miteda.

Esquecidos das notícias do dia
nos trilhos corremos o risco
de rasgar o resto dos camuflados
nos espinhos egoístas da guerra,
neurónios a rebenta pelas costuras
os corpos misturados com a terra
atordoados pelas amarguras
que nos roubam os pensamentos
e matam os meus lamentos.

Miteda, Julho de 1966
Joaquim Coelho
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.
.. NA TRINCHEIRA
.
Os pássaros desafiam as estrelas pardas
sem saberem invocar as preces
que os deuses apreciam todos os dias.
Como podem usufruir das mordomias,
quando os soldados sentem os efeitos
dos estilhaços que marcam os corpos.

A inquietação confunde-se na vertigem
do trauma que as cicatrizes
deixam no pensamento que atesta
um confronto de estranhos matizes;
dentro da guerra que se detesta
perder uma perna é muito duro
porque se perdem também as raízes
e pressente-se a amputação do futuro.

Perde-se o melhor que a vida tem
e o significado para quem vive
é mais um trauma que não convém…
assustadora ameaça que não tive
mesmo entrincheirado dentro da liça
senti que a guerra não faz sentido
na forma de entender a justiça;
- a voz dos cães deixa-me ofendido.

Nacala, Dezembro de 1966
Joaquim Coelho
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.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 17

.. GEOGRAFIA DA TUMBA
.
Hoje aprendi coisas sérias em geografia:
a beleza das machambas cultivadas,
com melancias aquosas para a sede
- esta sede que consome o corpo
desgasta a mente e retira a percepção!

geografia dos olhares de cores graves
e o medo nos olhos dos inocentes,
geografia dos gestos com coragem
daqueles que voam como as aves...
geografia do medo acantonado
nos silêncios que nos rodeiam!

Geografia dos mortos enterrados
na indiferença pálida do poder
que nos abandona nesta agonia
- assim aprendemos a geografia!

Enquanto sentirmos pulsar o coração
nenhum de nós apodrecerá nesta terra,
nem o cansaço que nos aperta o peito
será motivo para perder a devoção
e esquecer os sinais da topografia
porque um poder com grave defeito
perdeu a memória da geografia!

Diaca, Outubro de 1966
Joaquim Coelho
###############
.
.. COMBATE DIRECTO
.
Este jeito de escrever o fado
Que o tempo me faculta na vida
Tem o fascínio do amor sonhado
Na perfeição duma rosa florida.

Ténue é o sinal que desponta
Resultante da amálgama ácida
Que infunde as leis dos quanta
Girando com os anjos da galáxia.

O mundo com força criativa
Segue seu rumo em linha recta
Misturando a sensação emotiva
Neste contacto que me afecta.

Mantenho a razão catalisadora
Nos recipientes inertes e opacos
Mas a molécula-átomo propulsora
Dispara imparável contra os fracos.

A ironia do destino me apoquenta
Nos tempos incertos, conturbados,
Chafurdando na terra pardacenta
As vidas com destinos profanados.

Com esforço contra o afecto figurativo
Mas com amor e sincera gratidão,
Vou atenuando o sentimento negativo
Para aumentar a força da regeneração.

Assim combato a fétida letargia
Nesta tragédia de vida e de morte,
Vontade forte e cuidadoso na porfia
Contra a maldição dos trilhos do Norte.

Fechamos um ciclo de fatalidades
Para os corpos pétridos-virulentos
Vitimados nas suas tenras idades
Apodrecem ao calor do sol – nojentos.

Mueda, Outubro de 1966
Joaquim Coelho


... FORA DO JOGO
.
Quando já não acredito na guerra
saio por aí à procura dos generais
daqueles que usam a inteligência
para nos afastarem do perjuro;
não vamos servir de brinquedos
e não sou soldado de chumbo
para se divertirem no jogo
das estratégias contraditórias.

Não queiram alcançar vitórias
que humilhem outras gentes…
podemos ser todos diferentes
para perceber a razão da vontade.

Procuro os homens corajosos
com ideias mais brilhantes
para acabar com os dias dolorosos
dos soldados infantes.

Nacala, Novembro de 1966
Joaquim Coelho
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.
.. PEDIDOS AO VENTO
.
Desejo voltar ao cais de embarque
pedir aos deuses que o vento forte
me leve a navegar com arte…

esperar a suave brisa norte
vogando na mágica canoa…
sulcar o mar da esperança
acreditar que a viagem é boa
e corta a mágoa com a bonança!

Para que não vingue a sentença
daquela vontade casmurra,
a liberdade vai além da crença
de que tudo que mexe é “turra”.

Vou seguir a estrela refulgente
que ampara a leveza da vida…
acreditar na vontade da boa gente
sedenta da liberdade envolvida;

assim como quem acredita
neste caminhar na selva à toa
pedindo o fim da guerra maldita
para poder regressar a Lisboa.

Maúa-Niassa, Fevereiro de 1967
Joaquim Coelho
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sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 5


.. INSÓLITA INVASÃO
.
A noite vai alta e agitada
toda a tropa se movimenta,
na pista bem mobilizada
uma bazukada se apresenta.

Uma invasão formigueira ataca
e logo os cães começam a ganir,
aí o sargento Ferreira destaca
a voz firme mandando fugir...

Ainda não vemos o inimigo
e já sentimos a voz da derrota,
pois ser herói é um perigo
e empenho na guerra é janota.

Sinto o queixo junto ao chão
e ouço gritos alucinantes,
atiço a raiva do meu cão
logo avançamos triunfantes.

Na incerteza das soluções...
recolhemos às toscas trincheiras,
abrandam os tiros dos canhões
e ali ficamos como as toupeiras.

S. Salvador do Congo, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
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.
... DESVARIO IMUNDO
.
Aquele soldado rijo e afoito
crente em vingar o massacre
e abater os criminosos mentores
das mutilações escabrosas,
com violações animalescas,
e dos estripadores de inocentes,
não estava embriagado de raiva
mas com sentido de justiça!

Agora, mais calmo e sereno,
percebe a razão da sua sorte
e porque já sente o veneno
das degradantes confusões
que vão espalhando a morte!

Descoberto o covil dos ladrões,
esmoreceu a vontade de lutar
e enfrentar tantos perigos...
porque a Pátria é outro lugar
onde se passeiam os inimigos.

À sombra dos soldados destacados
para os confins do inferno...
desviam-se os víveres dos desgraçados
- alguns já dormem o sono eterno –
nos acampamentos do desterro
onde a vida é um grave erro!

Perante tanto desvario imundo
sinto que sou outra pessoa, atento
às notícias que mostram o mundo
moldado aos exploradores do vento
que vão surripiando esta terra...
e nós vivemos os males da guerra.

Mais cultivado e desperto p’ra vida
vou combater os mercenários
causa da nossa desgraça e morte.
Hei-de cumprir a sina prometida
para difundir os nobres ideários
e regressar a ti, por minha sorte.

Toto, Março de 1962
Joaquim Coelho


.. CARTA do LONGE
.
Aqui onde por descuido vivo, as coisas continuam insípidas e perigosas. Raros são os dias em que não lamentamos a morte de algum militar que enfrenta as vicissitudes da guerra. No entanto, continuo vivo e actuante, crente na bondade da natureza e nas virtudes que nos fazem viver para além do sofrimento. Minha querida, sempre tive esperança de que seremos recompensados com a desejada felicidade. Por isso não vamos desfalecer perante as barreiras que nos limitam as vontades.
.
Estamos em viagem permanente
e não devemos renunciar à vontade
nem à esperança que a gente sente
para alcançar a plena felicidade.

Amar é vencer com afagos
aquilo que nos é querido
é caminhar sobre os lagos
quando a vida tem sentido.

A distância não nos pode fechar
nas encruzilhadas desta guerra
enquanto tiver forças para lutar
hei-de regressar à nossa terra.

E a glória de vencer com amor
está nas virtudes da esperança
que renovamos com fervor
até ao dia da esperada bonança.

O fluxo do sangue ardente
movimenta o coração sonhador
para o aconchego permanente
do meu único grande amor.

Chega de ingrata ausência
nesta sequidão desoladora
vamos reavivando a paciência
até chegar a ternura criadora.

Está próximo o dia sonhado
para que os corpos carentes
promulguem o fim do passado
e nos devolva os sonhos ardentes.

Luanda, Janeiro de 1963
Joaquim Coelho

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... NOITE DO MERENGUE
.
Coisa boa, há festa no caniço,
coisa linda onde há magana
noite com mulata de feitiço
corpo em ritmo que não engana.

Sente-se o leve cheiro da mulenda
trespassando o ripanço do beiral
muito vinho e cerveja dá contenda
bem marcada na escaramuça ritual.

Beijos poeirentos nos embalam
suspensos nos lábios dos amantes
e já as mãos de arminho se instalam
na maciez dos tesos seios ondulantes.

O Pinelas já tremia, cacimbado,
com o reabastecimento na mão
correu para o alpendre, excitado
de tanto gozar, caiu no chão!

Olhos malandros no rosto adormecido
e a tonta sensualidade que me cativou
qual bom-bom gostoso e apetecido
que até as mágoas cínicas apagou.

O sortilégio dos afagos perdidos
ao luar íntimo da longa saudade
perdeu-se na razão sem sentido
que transformou a agonia em verdade.

Ternos espaços encurtam a distância
quando trocamos amargura por prazer;
quão irrequieta é a tua fragrância
que acaricia por dentro… e faz viver.

Alegrias e momentâneas amizades
ajudam a diluir o medo das emboscadas
neste rebuliço dos caniços-cidades
longe das balas na selva inseminadas.

Maianga, Abril de 1962
Joaquim Coelho
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terça-feira, 6 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 16

.

... A Caminho de MUEDA
.
A vida extingue-se no desespero
que explode dentro de nós…
nas picadas de Mueda
por onde temos de caminhar
à mercê da morte violenta
- tão cruel que nos sufoca
e despedaça a vontade de lutar;

os corpos caindo esfacelados
em cada emboscada sangrenta
que os corpos agonizados…
as balas são imploráveis
e alucinam os nossos olhos
acordados com renovada atenção;

ecos da metralha e das explosões
acordam os fantasmas das florestas
e… para que não haja mais ilusões,
ficámos mais bravos que as bestas
que nos fuzilaram a esperança
de sonhar como uma criança.
.
Mueda, Setembro de 1966
Joaquim Coelho
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.. DESESPERADOS
.
A alvorada em desespero
deixou-nos muito desolados…
não dei mais sangue ao moribundo
porque jaze morto e desalmado
e nada o fará ressuscitar
do seu sono profundo!

Foi perfurado pelo estilhaço
que o matou lentamente
quando a morte apertou o laço
sem nos dar qualquer razão
para tanta desolação.

Agora limpamos os olhos
para banir todos os ódios
que nos querem impingir;

espero que estejas adormecido
e a terra te aconchegue o corpo
para não ficares esquecido
no nosso pranto de dor…

nesta terra dos Macondes
cobro-te com a última flor.
.
Miteda, 26 de Julho de 1966
Joaquim Coelho






.
... CONTORNAR O CAMINHO
.
Olho o horizonte distante
sem vislumbrar o caminho
por onde possa regressar…
é tormentosa a falta do carinho
que me possa vir animar!

Mas se estás à minha espera
sem saber se o tempo conforta
as lembranças doutra era…
já perdi muito de mim
muito longe da tua porta!

Os devastadores conflitos
no mundo cada vez mais ruim
também nos põem aflitos…
dos mortos ainda ouço os gritos
e das crianças com fome
vem um sinal que me consome.

Crente na força da razão,
vou contornar os caminhos
que me enchem de espinhos
soltar as peias ao coração
e voar com os meus sonhos
fugir aos perigos medonhos
para que as ideias empedernidas
não me agravem mais as feridas.

Mueda, Novembro de 1966
Joaquim Coelho

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.. DIAS NO PLANALTO
.
No planalto, terra dos macondes,
domina-se uma grave ansiedade,
ao escutar os últimos suspiros
das brutais explosões…
todos corremos como sentinelas
entrincheirados aos baldões.

Nas picadas viradas a Miteda
os homens ficam sem tempo
para apreciar a suave paisagem
e todo o seu vigor engalanado
em tons do verde da viagem
dos homens vestidos de camuflado,
acordados na manhã assustada
com minas a rebentar na estrada.

Cada alvorada é um pesadelo
para entender as coisas simples
que podem acalentar a coragem
e reforçar o ânimo dos homens
que acreditam nas estrelas
em cada noite que os consome
sem contemplar as coisas belas.
.
Mueda, Julho de 1966
Joaquim Coelho
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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 15




... HORAS TRÁGICAS
.
Eis-me prostrado e ensanguentado
com o corpo descaído e esfacelado...
nem a violenta reacção me consola:
arremeço uma granada como esmola
contra a mortífera metralha inimiga;
nem a sombra do cajueiro a dor mitiga
neste meu corpo que lento se extingue
sem sequer dar um ai compensador!
Mas espero que o sofrimento mingue
para abater a raiva e a tormentosa dor.

Rebusco a força que me anima
e transfere a dor lá para o infinito...
digo a deus que lhe perdi a estima!
Nesta tragédia não ouviu meu grito
contra as bombas que deflagraram,
nem protegeu o corpo do Pinto
que os estilhaços dilaceraram!

Ainda circula o sangue que sinto
passar veloz nas veias tensas!
O tenente ferido e desmaiado,
está incapaz de dar sentenças...
vejo o seu rosto desfigurado
com estilhaços cortantes e quentes;
mais à frente, o cenário comovente:
soldados feridos... rangi os dentes
por ver um morto - herói inocente!

Avançou o Pessoa contra a desolação:
por via rádio, decretou a evacuação!

O Armindo, enfermeiro brioso,
enfrentou o trabalho, que era tanto,
com determinação e corajoso,
lá foi atenuando o nosso pranto.

Horas graves para esquecer
não fossem os mortos caídos...
aos feridos só lhes resta viver
mesmo com os sonhos traídos!

Miteda, 25-07-66
Joaquim Coelho
.
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... DESPOJOS DE GUERRA
.
Não choreis os mortos, nem a tormenta
porque a esperança vive dentro de nós;
um segundo de vida frente à emboscada,
pode ser uma eternidade sufocante
mas é este o destino que nos espera
nas terras dos macondes e na savana
onde a dor amarga nos desespera.

O dilema está na honra a defender
e nos valores da pátria de cada um;
há uma verdade que temos a reter:
a nossa pátria está muito longe,
lá na outra banda do mar…

respirar o ar da selva africana
não nos dá o direito de conquistar
e transgredir as leis da razão serena
vivendo o destino a comer a poeira
espicaçada na cubata da morena.

Contemplamos a selva agreste
e sentimos a magia com esperança:
a saudade ataca forte como a peste
e os olhos choram como a criança…

a alegria da vida não volta mais
aos mortos abandonados na terra
porque a pátria sagrada dá sinais
de glorificar os despojos de guerra.

Miteda, Julho de 1966
Joaquim Coelho



... AMORTALHADOS
.
Somos valentes caminhantes do sertão
que a África nos destinou a prazo…
envolvidos no prelúdio da escuridão
caminhamos nos sulcos já pisados
temendo a afronta das minas furtivas
como os combatentes desventurados.

Enquanto somos vivos desenganados
bebemos dos charcos apodrecidos
que servem de oásis nas savanas
nos dias sem chuva… adormecidos
com as vidas levemente estagnadas
aprontamos as vestes do caixão
descarregado da carlinga do avião.

Mueda, Julho de 1966
Joaquim Coelho
.
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.
... ESPERANÇA
.
Os meus olhos fixados nas folhas
das árvores que o vento castiga
já sentem a agitação da intriga
lastimosa dos censores;

tentam adivinhar o imaginário
das palavras ainda sem voz,
vão oprimindo a vontade
de atirar para o papel abstracto
todas as razões dum ideário.

Num mundo tão desigual
colho as notícias da verdade
enquanto as folhas das árvores
me dizem em surdina:

- Os sinais são de esperança...
partirás em dia de bonança!

Beira, Janeiro de 1967
Joaquim Coelho
...

terça-feira, 29 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 4

.
... SALTO NO ESPAÇO
.
Embarco ao entardecer…
em busca da ventura pressentida
montado no corcel do pensamento
e no ar… com a vida reflectida
na encruzilhada do vento.

O espaço nublado me repele
para o avião que voa longe
e fica num contínuo vaivém!
Recordo o tempo de alguém
que ficou na minha terra
a quem chamo mãe…
e eu, em forma de pássaro
encharcado… na guerra!

Embarco audaciosamente
com a satisfação de vencer
a sensação de medo…
airosamente, salto no espaço
sem qualquer segredo…
alguém me estende o braço
na madrugada do meu querer,
é a ventura…
nas terras de Angola
começo a reviver
uma longa amargura!

Luanda, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
.
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.
.. MANHÃ CHOROSA
.
A manhã acordou chorosa!
Já o sol se afirma no horizonte
e eu busco a sombra majestosa
do embondeiro amigo da gente.

A dolorosa notícia agrava as dores
e interrompe o merecido descanso:
sete soldados dos briosos caçadores
foram pelos ares, despedaçados...
com o jeep que accionou uma mina,
logo na hora que o diabo determina!

Fomos em socorro dos desgraçados
que antes uns dias vimos felizes
em camaradagem, juntos no Bembe,
com a prontidão evitámos deslizes;
encontrámos fumegantes destroços
bocados de corpos espetados no chão
fugindo do fogo, os soldados moços
estavam aturdidos pela confusão.

Uma tarde triste, fim de dia choroso
e o traumatizante esmorecimento
contaminou todos os corações;
ninguém foge ao sentir doloroso
mesmo disfarçando as emoções...
escapam-se as lágrimas silenciosas
nos rostos de semblantes marcados
e as opiniões cortantes como lâminas
acirram a raiva contra os culpados!

Sentimos a dor e o grave aviso
- a guerra já galgou mais um friso.

Toto, Abril de 1962
Joaquim Coelho


.. LONGÍNQUO HORIZONTE
.
Confirma-se o encontro dos corpos
em desejos convergentes
gestos profundos, longos prazeres
tão intensos que os nossos olhos
se perdem na lascívia das bocas;

um gozo louco que nos atrai
nesta escuridão amansada...
uma intensa infusão de amores
envolvendo a paixão extasiada.

Com afecto ofereço a gratidão
no momento do merecido devaneio,
esse enredo tecido no coração
é como a esperança do meu rodeio.

A tua imagem emerge na saudade
e o meu rosto escreve solidão…
sei que é grande a tua bondade
e não deixarás de me dar razão.

No meu silêncio... exposto ao sol
que ofusca o longínquo horizonte
lá no mar cor do arrebol
ainda não vejo azimute que aponte
o caminho à caravela arfando
mas o suspiro com voz dolente
escuto-o de vez em quando
no bater deste coração que sente...

E ao som do mais lindo poema
que os meus lábios cantassem
no sonho que tenho presente
da tua boca pequena
límpidos os teus me beijassem.

Negage, Novembro de 1962
Joaquim Coelho
.
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.
.. MÍSTICOS ANSEIOS
.
A alegria de viver sem desalento
alimenta os corpos sedentos de amor
que nesta selva, em cada momento,
se batem pela vida com fervor.

Vós, que buscais místicos anseios
derrotando os dias de mais tristeza,
bem mereceis as carícias dos seios
que vos oferecem na alva beleza.

Mas este destino que nos abraça
na gratidão fantástica do querer,
faz parte da vontade que nos enlaça
na patriótica condição de combater.

A vida é dura… com lamentos,
muita esperança e com bondade
venceremos os inóspitos ventos
que tolhem a almejada felicidade.

Luanda, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
.

sábado, 26 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 14

.. CONTRASTES DA GUERRA
.
Caminhamos nas matas agrestes
com as fardas esfarrapadas
o corpo empastado nas poeiras
que absorvem as gotas de suor
os pés com bolhas profundas
sem pão e sem nutrientes
bebendo nas poças imundas
restos das águas apodrecidas
que deixam marcas nos dentes.

Nas esplanadas mais vistosas
deliciam-se os senhores da guerra
nos bem servidos banquetes
a transbordar de bebidas
em brindes com gestos formais
aperitivos de corpos enfeitados
nas danças de contorções sensuais.

Entre as brenhas e os trilhos
há homens a sofrer os reveses
na lutar contra o aniquilamento
onde os feridos ficam cadáveres
estendidos no chão de Nangade
em espera de lugares recatados
na lonjura do planalto de Mueda
no lugar onde são enterrados.

Mas, nas savanas mais a sul
o lazer dos mandantes da guerra,
tem os helicópteros desviados
das suas missões rotineiras,
não socorrem os caídos por terra
por causa das brincadeiras
em campanha de caça e veraneio
e o gozo com férias pelo meio!

Os combatentes já deprimidos
sentem-se abandonados e tristes
mas ficam com a dor e o luar
e ouvem os pássaros em surdina…
animam-se com a força de lutar
para mudar o rumo da sina!

Nangade, Maio de 1966
Joaquim Coelho
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.. RASGAR O TEMPO

Eu não consigo rasgar o tempo
que marca o meu consciente.

Sinto o fogo da paixão à liberdade
e o rumo da razão desta gente;
mas não posso mudar as ideias
nem remover esta ansiedade
ainda atada às velhas peias...

Não posso recusar o sol refulgente
nem as estrelas que alumiam o sonho
nos olhos de cada criança inocente,
onde a fome, pesadelo medonho,
sem esperança na piedade adormecida
para alimentar as migalhas de vida.

Resguardo a memória nos versos
que o voo rotineiro fermenta...

Os ecos do protesto dispersos
nas ordens que a vida enfrenta
jamais me obrigarão à cobardia
de abandonar a razão em fantasia.

Aqui no planalto, centro da guerra,
sinto os pés a resvalar p’ra terra!

Miteda, 28-07-66
Joaquim Coelho
.




.. ESTILHAÇOS BRUTOS

Hoje ficaste limitado no tempo da tua vida,
amigo trespassado pelos estilhaços brutos.
Só te resta descer à terra silenciosa;
pois o teu corpo em contratempo,
já se despediu desta terra misteriosa.

Tudo o que se procura está no tempo,
na sua consequente naturalidade.
Nada se modifica nas casernas,
e mesmo o sentimento fica siderado
como se fossem homens das cavernas.

Alguns fazem um esforço abnegado,
para combater o velho bigotismo
e acabar com a consentida cegueira
dos louvores ao mais aprumado...
perdida a recta intenção do cinismo
só falta acabar a cósmica pasmaceira.

Os ritos castrenses causam inquietação:
a continuidade das cerimónias dengosas
e as lamechas impúdicas e chorosas,
por quem a morte não teve compaixão.

Mutamba, Abril de 1966
Joaquim Coelho
.
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... DEVANEIOS NO ÍNDICO

Hoje olhei o Índico transparente
apeteceu-me
procurar as coordenadas do teu coração
apontar no mapa, indiferente,
pareceu-me
vislumbrar o caminho na tua direcção.

Já Mocímboa fica no horizonte
distante
e a tua formosa imagem se reflecte
no céu que fica de fronte
equidistante
do caminho de Mueda, que se repete.

Divagando, vou pintando a alma
multicolor
para que o tempo me seja breve
com suaves tons de calma
amor
a condizer com o que se escreve.

Diaca, Outubro de 1966
Joaquim Coelho

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terça-feira, 22 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 13

Vamos intercalar Poemas de Angola e de Moçambique
.
Entre os Poemas escritos em Angola e os de Moçambique vai o tempo de 5 a 7 anos. A diferença no modo de abordar a guerra, estará nos seguintes dilemas do combatente:
1 - Ao embarcar para Angola fui com a convicção de que a população branca e negra precisavam da nossa ajuda porque estavam a ser massacrados e esquartejados no Norte de Angola (foram barbaramente assassinados cerca de dois mil brancos e seis mil negros, em 1961).
2 - Mas, quando fui obrigado a deixar o curso de Engenharia Electrotécnica, que frequentava na Academia, e seguir para a guerra em Moçambique, por ter recusado mudar para um curso de âmbito militar, já não havia convicção mas a certeza de que o problema da guerra era político e não militar; conhecia bem a pressão internacional e a ganância dos países mais poderosos em se apoderarem das riquezas dos territórios administrados por Portugal.
O descontentamento e o mal-estar marcaram os meus 29 meses em Moçambique. Daí ter passado para o papel os estados de alma nos momentos de maior lucidez e azedume.

... DISSABORES AMARGOS
.
Má sorte ter embarcado em Lisboa
e ter caído nesta selva onde a leoa
me embarga a voz temente ao perigo.
Não sou eu que o digo...
os companheiros desanimados
que se manifestam ameaçados!

O Figueira avança na palhota
ao encontro da solidão;
o Armindo patrulha a mata
em busca do grande leão;
o Mota, bom jagador, faz batota
com o batuque a preceito;
o Coelho... triste, sem jeito
tangendo a viola dolente
para desanuviar a dor que sente.

Sente-se a tristeza do comandante
que se esforça em filosofar a vida,
mas a vida é cada instante
em que o sonho nos dá guarida.
Tento lançar os prantos ao mar
enquanto a esperança me afoita
nas quentes noites de luar,
é um desafio dormir em Nacala.

Contra as ameaças indigestas
a razão da minha voz não se cala...
frente a este movimento feminino,
porta-voz dos ditadores malditos
que dilaceram os corpos benquistos
e afundam a pátria já naufragada
na imensa pobreza acorrentada.

Porque hei-de sofrer os dissabores
e o feito dos males de tanta gente?
Vou afugentar as minhas dores
sem medo de ser diferente...
despertar os corações amuados
do Portugal longínquo, adiado...
bramir o grito dos amordaçados
e despertar o calor do mundo aliado!

Nacala, Agosto de 1966
Joaquim Coelho


... TORMENTOS
.
A noite de sono atormentado
em que dormimos acorrentados
à desgraça da pátria incapaz
de saber se ainda existimos…

abandonados nas terras recuadas
dos milheirais das machambas
onde mergulhámos o desalento
no lodo das incompetências
dos poderes soterrados em S. Bento.

A sorte que nos cabe no momento
já se esboçava no desenlace
que a tragédia adiava aos ousados
entre os combatentes cansados.

O pesadelo é uma eternidade
que a manhã acordou
quando a morte amarfanhou
mais um soldado valente;

o socorro é a ínfima esperança
para nos livrar do tormento
que nos devora os sentidos
para reinventar-mos a vida
que nos foge com o tempo
no prelúdio da sepultura…

O silêncio dos olhares
deu alento à decisão
levar os feridos aos ombros
e caminhar pelo sertão
fugir do ambiente hostil
que nos mordia a vida
alancar até Napota
nossa terra prometida
acertar contas com os sacanas
que nos atiram p’ro inferno
por abandonarem nas savanas
os mortos no sono eterno.

Mutamba dos Macondes, Março de 1966
Joaquim Coelho
###########################
.
... CORJA DE LADRÕES
.
A força que nos anima na certeza
vibrante dum peito sem emoção
também vence a insídia dos escolhos
que combatemos com firmeza
mesmo que a angustiante comoção
nos deixe as lágrimas nos olhos.

Os lamentos dos feridos silenciosos
são o rancor contra o inimigo astuto
que nos fustiga as doridas faces…
na rectaguarda, colonos asquerosos
transferem os seus bens para o puto,
debandada de ladrões sem disfarces.

Amigo descarnado que padeceste
trespassado pelas balas sem apreço…
corpo jovial, vibrante e moço,
sem vida no rosto, emudeceste…
aos deuses que cortaram a voz eu peço
que te recebam em paz, sem alvoroço!

Mueda, 16 de Março de 1966
Joaquim Coelho
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sábado, 19 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 3

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.
... NOVOS PADRÕES
.
Ah solo pátrio tão desigual
ao descrito nas letras de Camões;
tamanha ingratidão afunda Portugal
na eterna luta dos canhões!

Os soldados valentes vão lutando
sem a galhardia dos brasões...
ninguém esquece as mães gritando
lá longe... extremosos corações.

Já não se levantam mais padrões
nas selvas que rasgamos, dolentes,
porque os novos filhos barões
têm vontades mais convincentes.

E quando olhamos à retaguarda
sentimos um aperto nos pulmões;
continua a desfilar na parada
um bando de ignóbeis tubarões.

Quitexe, Agosto de 1962
Joaquim Coelho
.
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.
... TORMENTO DA VIDA
.
A inquietação
no meu destino
atormenta a certeza do porvir,
procuro fugir ao desatino
que a guerra provocou
e perco a visão do caminho
que outrora sonhei
quando peregrino
na cidade deambulei.

O tormento da vida
afigura-se além…
no meio das matas
percalços sem medida
e os milhafres
circulam nos céus
à procura de alguém
que caminha espavorido
e debicam os sonhos meus…

já lhes perdi o sentido…
e a vida neste desdém
traça-me o rumo
que percorro desprevenido.

Damba, Março de 1962
Joaquim Coelho
.


.
... SEM TRÉGUAS
.
Absorvo a mensagem da natureza
que promete um dia de sol…
os primeiros passos na mata
em trânsito entre o silêncio
que me arrasta o olhar castigado
pela angústia dos ausentes.

Como um solitário esquecido
nos dias vivo descontente
- porque até as asas esmorecem
e não perdem o jeito de voar…
sinto os companheiros absortos
nos pensamentos das noites de Luanda.

Por isso recusei sorrir à súplica
do olhar das crianças famintas
que ficaram abandonadas em Tabi
- uma dor tresmalhada que senti!
Era um olhar tão frágil e vazio
que até o calor ficava frio
e a fome secava as lágrimas
nos rostos sufocados em sofrimento.

Nem sequer me deixaram parar
para desprender o meu olhar
nos infelizes desprezados pelo vento
que atiçam a minha vontade
de acabar com esta ansiedade
e derrotar os que fomentam a guerra
que os bandidos semeiam nesta terra.

E não vou perder a dignidade
nem dar tréguas aos impostores
porque a gesta desta mocidade
dá lições a muitos doutores.
.
Quibaxe, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
.
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.
... DESLUMBRAMENTO
.
Resguardo no silêncio da memória
o sorriso que resplende a luz
dentro dos teus olhos…
Como um canto de tons lunares
é uma música doce da ventura
que me percorre o pensamento
e deixa deslumbrar o inígma
que incendeia as palavras de manhã,

anoitece e o fulgor da imagem
reflecte-se na vertigem do desejo
o coração esconde-se envergonhado
antes que o trigo desencante a fome
e o corpo dance com as sombras
nas noites calmas dos amantes;

respiro a luz dos teus olhos
tão audazes e penetrantes
que me despertam a vontade
de proteger-te dos abrolhos
que podem causar infelicidade.

Luanda, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 2

.
.. O DESFILE

Os maçaricos na avenida, garbosos,
Batem com as botas no chão
Mostram que são os mais corajosos
Para cumprirem a comissão.

As moçoilas ladeiam as avenidas
Conjecturando os coitados
Que vão gozar as mais queridas
Antes que sejam deslocados.

Passam pela Baía os olhares
Sem respeito pelos veteranos
Que esperam dias melhores
Longe destes tempos insanos.

Garotas lindas e endiabradas,
Sempre a trocar de amores
Enquanto dais as gargalhadas,
Nós desfolhamos as flores…

Luanda, Outubro de 1961
Joaquim Coelho
.




.
.. EXORTAÇÃO

Sem temer as longas jornadas
embrenhados na exótica vastidão,
com o esforço nas faces suadas
e a beleza que nos prende o coração...

Em saltos rasantes, prazenteiros,
parecem aves em voos certeiros
caindo do azul do céu...
espíritos refulgentes e audaciosos
não temem rastejar em noites de breu,
depois de lançados em voos perigosos
onde desenham os leves perfis
no desafio às condições hostis!

São macabras as bestialidades
nas florestas de suaves tonalidades,
corpos decepados e retalhados
deixam marcas tristes na memória,
dias de amargura e de saudades
da aldeia de caminhos orvalhados.

As poeiras esquisitas e molhadas
encobrem a dor dentro dos olhos;
uma imensidão de finos escolhos
limita o percurso nas “picadas”...

Senhores, deixai viver os soldados
forçados à condição de batalhar
com os corpos tensos e cansados
e a alma desejosa de voltar...

Toto, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
.
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... ESPAÇOS

É infinito o espaço para o sonho da vida
quando o coração bate docemente
perdura a amizade sem medida
e o corpo sofre porque és ausente.

Os instantes em que aferi a imagem
que desenham as palavras de apreço
foram breves nos meus olhos em viagem
como a simpatia que te serve de adereço.

A tua voz doce prolonga-se no espaço
e deixou eco nos meus ouvidos
deu o timbre ao poema que faço
quando a imagem desliza nos sentidos.

Habitas no aconchego da memória
onde se renovam momentos de ventura,
o melhor desta benevolente história
é o sorriso calmo da minha ternura.

Não sei se entendes a brisa suave
que difundes dos olhos fascinantes,
mas não consideres pertinência grave
quando os sentidos estão distantes.

Não me esquivo às lufadas de vida
que encontro nas noites de aventura,
porque o feitiço é saborosa bebida
que me enche o coração de ternura.

Luanda, Agosto de 1962
Joaquim Coelho
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.. GESTO SECRETO

São longos os dias
quando o suave amanhecer
me diz que és ausente
deste meu ingrato viver,
em direcção às estrelas
e começo a decifrar o firmamento
mas nada me dizem de momento...

mas as rosas com espinhos
não deixam de exalar perfume.
com este gesto secreto
uma nova esperança renasce
na transparência das palavras
que atiro para o papel
e a luz dá vida ao sonho
desvendando o amor que reparto
no aconchego do nobre gesto.

Contigo, rosa florida,
posso repartir a alegria
onde cabe todo o nosso amor,
posso enlaçar os braços
e abraçar com ternura
deixar no teu corpo os traços
como um rei majestoso
que mostra a sua bravura.

À Minha primeira namorada
Angola – 1961
Joaquim Coelho
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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra

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.. A DESPEDIDA
.
Embarco para além-mar
Com um amor na bagagem
Deixo uma carta a lembrar
Que será longa a viagem.

Sem ofensa à minha amada,
Rejeito encargos do coração
Que me deixem a vida atada
Sempre à espera do caixão.

Na partida não dei esperança
Num beijo de simpatia,
Até parecia uma criança
Com paparicos à porfia.

As lágrimas vieram depois
Com a saudade a remoer
Os momentos de nós dois
Que não mais podemos ter.

O coração suspira no peito
Com vontade de te ver
O teu retrato tem defeito:
Não ouço o coração bater.

Nesta ausência forçada
Que a guerra me obrigou
Tenho uma relíquia guardada
Que a minha amada ofertou.

Inebriado no sonho belo
De voltar a ter teus beijos
Olho a madeixa do cabelo
Onde afogo os meus desejos.

Maquela do Zombo, Outubro de 1961
Joaquim Coelho
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... APRESENTAÇÃO

Parti às seis da tarde do aeroporto,
sem ninguém a dizer adeus.
Com os anjos voei no azul do céu,
muita vontade de continuar vivo
- ao destino nunca me esquivo...
desembarquei nas pistas de Luanda,
onde encontrei a ausência do sabor
e a pobreza das vidas sem amor.

Caminhei embrulhado no destino
e fui condenado ao silêncio...
A importância de nascer menino
esvai-se em cada hora de combate
e logo no primeiro embate...

Tilintam os sinos nas igrejas
e os olhos contemplam os mortos
que tropeçaram na mina obscura,
mas morreram hirtos, sem invejas
e eu já sinto a grave amargura
de viver no meio da guerra!

Ainda espero uma carta da terra,
dos ausentes que nunca saberão
porque se morre a bem da Nação.

Luanda, Outubro de 1961
Joaquim Coelho
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... TOCAM OS CLARINS

O céu não tem fronteiras
para as asas do partir!
Os clarins tocaram às bandeiras
quando nós, gente do povo,
embarcámos sem vontade de sorrir...
crentes em regressar de novo.

Não importa aos heróis vencer metralha!
Nos horizontes da nossa memória
temos as pestilentas cubatas de palha
e outras gentes com história...

Sentimos a liberdade de julgar
com perfeito sentido de rectidão,
mesmo na guerra não há lugar
para vacilar... à vontade do coração.

Só quebrando as lanças da agressão
teremos mais livre o destino
para eternizar a vida em harmonia.
Os povos andam em desatino
por força do sangue que os desafia
nos caminhos da liberdade...

Se temos honra e dignidade,
vamos procurar a paz... sem guerra
nos mares, no ar, em terra!

Bembe, Março de 1962
Joaquim Coelho
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.. BOCAS DE FOGO

Nesta fúria á hora do fogo
na terrível recusa de cair no chão
- ninguém sabe qual é o seguinte –
fugir à morte também é um jogo:
estar onde não há explosão…
ou aceitar a morte com requinte.

Mergulhar na mata sem protecção
ouvir o estrondo dos rebentamentos
dos canhões em vómitos de cólera
é mergulhar os sentidos na solidão
e ficar sem réstia de pensamentos
mais os sons da metralha mortífera.

Tantos sons de alerta alvoraçada
deixam um rasto de aço penetrante
que perturba o sangue dilatado
e deixa os sinais da sina trocada
em cada bala de fogo fulminante
se furar as veias de algum soldado.

Quicabo, Fevereiro de 1962
Joaquim Coelho
.
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.. VENTO MENSAGEIRO

Este vento que sopra agreste
e traz até mim os teus odores,
envolve meu coração na veste
que faz de mim tição de amores.

Sem temer o agravo das jornadas
avanço ao teu encontro, sedento
dos beijos nas faces rosadas
para aliviar o meu tormento.

Porque estás longe e tranquila
dou longas asas ao pensamento
para voares até às terras da Huila
no rumo das lufadas de vento.

Assim poderás atender o pedido
na sublime mensagem do coração
reanimar um amor quase perdido
nos espaços longínquos do sertão.

Poderei afagar teu doce rosto
com a ternura bem guardada
dois depósitos cheios de mosto
que fazem de ti mulher prendada.

Temos imensa terra adormecida
que faz de nós gente de aventura
a vida na savana está prometida
aos que a desbravem com doçura.

Não te esforces pelas sementes,
enquanto tens manga e papaia
para satisfazeres o gosto que sentes
quando abres o vestido de cambraia.

Então, junto ao peito aquecido,
despertas o fogo do casto amor
e devoras o fruto apetecido
até atestares todo o seu sabor.

Quitexe, Junho de 1962
Joaquim Coelho
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.. DESENGANOS

Embarcámos na noite escura,
como de costume...
em busca do amor que escasseia
já pressentia
a noite que se refugia
no negrume dos sonhos em mistura
dos gestos secos, inconfundíveis,
e a coisa fica dura...
na curta história dos corpos fechados
com emoções invisíveis;

desejos vadios e fingidores
entrelaçados nas nossas dores,
passam o tempo em volta de nós
bocas serenas, quase sem voz;
danças feliz, quase louca…
se queres servir-te de coisa pouca
estamos sozinhos no parque
aproveita agora que não é tua...
antes que eu embarque
e apague a lua!

Luanda, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
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.. DIFERENÇAS

Vestido de nuvens, acordei na rua
com água a correr nas veias...
uma vontade enorme de te ver nua
para os festejos do gozo a meias.

Sei que percebeste o meu recado
quando recolheste aquele beijo,
os lábios deixaram-me intrigado
e o sabor adormeceu o meu desejo.

Há alguma desordem nesse riso
que difundes da casta inocência,
a condição das entranhas que piso
respira os gestos da boa decência.

A aragem despenteou os cabelos…
o corpo bem aconchegado ao meu,
sem precisar da cumplicidade do vento
deixou a minha mão passear
nos contornos dos teus segredos.

Os sentidos farejaram os alimentos
que excitam a pelugem que se abre
aos desejos retocados pela fome
dum orgasmo impaciente, gostoso
na usura do sulco espumoso.

Ficaste com a blusa bem diferente
a encobrir os gestos dengosos
e os teus seios mais garbosos
a comporem a imagem refulgente.

Luanda, Outubro de 1961
Joaquim Coelho
================ CONTINUA nova página

domingo, 13 de junho de 2010

Tempo Presente - Poemas Censurados 2

Continuação dos Poemas Censurados e recuperados:
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. .. CAIS DE EMBARQUE

A manhã submergia da bruma
e já o teu semblante parecia arfar
com a blusa densa sobre os seios
tesos e humildemente rosados
quando a vontade se esfuma
sem tampouco lhes tocar,
quis combinar os suaves meios
de cumprir os dias sonhados!

Apenas pude beber das credenciais
abonatórias da tua beleza…
os olhos a transbordar sorrisos banais
que suavizavam o bater do coração
gravemente inflamado pela vertigem
do embarque para a incerteza
recolhida bem no fundo do porão
onde compreendemos a nossa origem.

Ali espalhados pelo lastro do porto
sentia-se o prelúdio dos desencontros:
namorados em lânguidos suspiros
perdendo as energias do conforto
nos dias tristes e noites de vampiros.

Avançámos ao encontro do mundo
que nos devora sem piedade
enquanto o silêncio tenso e profundo
nos atrofia a crença na felicidade.

Rendidos ao chamamento da guerra
que se abatia sobre os nossos destinos
ninguém se orgulhava do desfile
em trânsito na gare de Alcântara-terra
onde embarquei ao som dos hinos
de cabeça erguida, olhando de perfil.

Limpando as lágrimas furtivas
sentidas nos peitos apertados
acenámos com as boinas punitivas
das razões por que somos embarcados.

Gare de Alcântara, Janeiro de 1966

Joaquim Coelho
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.. AMOR NO CAIS

A lua gravita à volta do infinito
vagarosa, ilumina a noite escura
e eu não cheguei a ver a formosura
na lonjura dos sonhos perdidos…

Um navio atravessa os mares
e daixa os amores nos cais
muitos meses separados
deixam-nos a vida à deriva
o olhar vê longos horizontes
e um lágrima esquiva
vem perturbar os pensamentos
em cada noite atribulada.

A saudade gravita nos olhares
perdidos na imensidão das savanas,
os pássaros da noite me despertam
na alvorada dum dia tenso
dentro da brutalidade da guerra
onde descobri porque se enlouquece
enquanto a brisa nos separa
este amor que imerge nas águas
do oceano da nossa desventura.

Há rumores de regresso à amurada
dando novo rumo à pátria;
será verdade ou é loucura
acreditar que ainda és minha amada.

Luanda, Novembro de 1967

Joaquim Coelho
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.. AEROGRAMA PERDIDO

Quando eu regressar da jornada
que a Pátria me determinou
porei fim a esta angústia
de saber aferir a razão
porque falharam os aerogramas
que me davam a ilusão
de acreditar no amor adiado
como forma de salvação
do coração destroçado.

As vicissitudes são tantas
neste espaço dos medos
que já não sei saborear o amor
nem do teu corpo os segredos
e o coração amarrado
à penúria dum papel
é como um corpo amolgado
antes de saborear o mel.

Não me deixes na solidão
destes caminhos minados
onde se rompem os corpos
feridos e ensanguentados
na tragédia das picadas
perdidas na paisagem
com molduras de espingardas.

Deixa-me olhar a imagem
que um dia te roubei
na planície da juventude
onde desagua toda a verdade
dum amor que nos uniu
na lonjura da distância
que esta guerra pariu.

Não estilhaces o meu corpo
com a arma do silêncio…
a fuga não é razão
para me desamparares
no meio deste sertão…
se os seres nascem aos pares
o meu é par do teu
como o teu é par do meu.

Antes do fim há um sinal
que revela as emoções
de quem anda à deriva…
ainda espero a carta
que me traga a salvação
e o consolo do refúgio
que está no teu coração.

Porto Amélia, Maio de 1966
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.. AGONIA NAS PICADAS

Para os soldados atirados para o mato
os dias são de grande inquietação,
sujeitos a fortes ataques em abstracto
vivem horas terríveis de aflição.

O percurso de Quibaxe até à Zala
é uma jornada de grande tormento
abatises, armadilhas, nem se fala
nas angústias e horas de sofrimento.

São dias e semanas de amargura…
os jovens a morrer pelos caminhos
quando a vida já não perdura
nestas estradas cheias de espinhos.

Galgando densas matas e capinzais
arrastam-se aos tombos nas picadas,
correndo o risco de não voltar mais,
vão altivos e firmes nas caminhadas.

Quibaxe, Novembro de 1961
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... APRONTAR O DESTINO

Aqui perdido na savana,
invento um mar com ondas calmas
o vento e um barco à vela
algumas aves para me acompanharem
e a estrela do sul para me guiar
até à terra da minha saudade.

Não sei se tens o dom de sonhar
enquanto me esperas…
mas sei que não posso prender-te
dentro de mim…
para alcançar a liberdade
tenho que libertar o pensamento
e mitigar o absurdo da guerra.

Lutarei até ao fim
para que a nossa felicidade
se liberte deste tormento
que me faz rastejar na terra.

Tenho que libertar a força
que trago dentro do peito
combater escabrosos inimigos
ladinos como uma corça
na guerra do preconceito.

Mueda, Novembro de 1967
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... TRILHOS DE QUIPEDRO

Somos soldados generosos
embarcados no escuro dos porões
dos navios mais ordinários…
sem certeza do regresso.

A Baía vestida de festa
guarda-de-honra e fanfarra
Luanda virada do avesso
onde fizemos a grande farra.

Depois da confusão da noitada
toda a juventude promissora
avançou no destino marcado;
serra da Canda e Quipedro,
momentos de grande emoção,
com tanto turra assanhado
tinha que haver explosão.

Aos primeiros rebentamentos
vindo dos morros de Quicabo,
começaram os grandes tormentos
e as pernas a tremer, de espanto…
foi atingido o primeiro-cabo
e mais sete soldados mortos
deixa o pessoal em pranto.

Toto, Março de 1962
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.. ROTAS TROPICAIS

Barcos parados no porto de embarque
sem vontade de partir para longe…
que levais no escuro dos porões,
porventura algumas sementes
ou máquinas de trabalhar o pão…
e roupas para os desnudos
que vivem longe desta confusão?

Barco que não sentes a vergonha
de levares os soldados à guerra,
navegas com toda a força bruta
que te mandam as máquinas,
sem veres que as mães em terra
vivem a despedida chorando!

Barco engalanado de gaivotas
onde estão os governantes
amotinados como os agiotas
com laivos de reles ferocidades?
Com a miséria vem a confusão
dentro dos cérebros mudos,
só teremos nova sociedade
na volta dos valentes da nação.

Barco apressado que voltas
dos mares e rotas tropicais
trazes desfraldada a bandeira
das cores rubras de esperança
e regressam os combatentes
cantando os hinos ardentes
como na viagem derradeira…
mas na memória dos ausentes
fica a emoção verdadeira.

Beira, Março de 1968
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.. OS PROSCRITOS

Quando o clarão da aurora esmorece
a força turbulenta das monções
já teu corpo ferido se desvanece
nos abismos profundos dos sertões
das horas silenciosas, sem estrelas…

Não respondes aos efeitos do plasma
que injectamos nas veias feridas…
teus ouvidos ensanguentados, janelas
no rosto desfigurado que não sentes
percebem-se as emoções sentidas
nos olhos lacrimosos dos presentes.

Isto é a tragédia, um descalabro!
Os queixumes graves, quem os ouve?
… os mortos não dão amplexos
gesto comovente e macabro
da desgraça que cai sobre os danados
com os corpos jacentes em Napota
miseravelmente aí enterrados!

Na marcha de regresso ao acampamento
quebra-se o silêncio com metralha
que agrava mais o nosso sofrimento
e corta pela raiz o desejo apetecido
de terminar a razão desta batalha
que nos deixa infelizes e aflitos…
sem acabar com o sono imerecido,
em Mueda já somos proscritos!

Mueda, 17 de Junho de 1966
Joaquim Coelho,
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.. RUMO DA RESTINGA

Aqui desdobrados neste espaço
a ameaça das obsessões paranóicas
destrói o melhor dos sentidos,
razão porque me disponibilizo
contra o imobilismo putrefaciente
inibidor dos fluxos de ideias
sinto o culto da subversão
dos padrões éticos castrenses
nas casernas de elites aéreas
onde há réstias de realismo.

Sem jeito para militar condicionado
entre companheiros desenquadrados,
com uniformes de barro cinzento,
deixo sementes do universo sonhado
mais generoso e sem vaidades
sem a ambiguidade das soluções
mistificadoras da razão da guerra
onde ocultam as imagens perversas
poluidoras do ar da nossa terra.

Sinto os fluxos de energia variada
que a vida tormentosa me oferta
e no espaço ocupado que sobra,
multifacetado de gente bizarra,
invento incursões intencionais
dentro das consciências desabitadas
com imagens mais convencionais
contra a razão da guerra inexplicável.

Liberdade perdida? Que ilusão
me faz obedecer à terra-mãe?
A verdade dentro do coração
Proibe-me de dizer sempre amém!

Os companheiros mortos no caminho
jamais sairão do pensamento
das mães que gritam até ao Minho
clamando suas dores ao vento!

Como é possível tanto sofrimento
no clamor contra a surdez de alguém
que vive para os lados de São Bento?
As nossas dores vão mais além
das forças gratas da emoção
porque pressinto a grave derrota
virando os tempos desta Nação.

Nacala, Junho de 1966

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.. DESAFIO À MORTE

Foge para longe do sentido
enquanto busco o caminho
que um futuro prometido
encorajou no meu desejo
de afagar os sinais da vida
que se apaga lentamente…
.
não escarneças o corpo
que sofre amargamente
enquanto unido à alma
é razão da vida da gente
e o desejo absoluto
de manter a unidade calma
está no espaço que disputo
à morte que me persegue
nos contornos do combate,
.
mesmo vestida de grinaldas
não vou cobiçar-te as feições
esculpidas no horizonte sombrio
que anda a desafiar-me…
aos tombos, aos baldões
nas emboscadas, o calafrio
onde passas, fugidia
não tentes surpreender-me
… marca encontro
p’ra outro dia!

Nangade, Setembro de 1967
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.. AS MINHAS DORES

Penso em ti, solitário
cumprindo o meu fadário
nas horas sofridas…
nas matas de Miteda,

horas de dor e amargura
que compartilho, em memória,
(porque não me sai da lembrança)
o bálsamo dos teus odores.

Assim escorraço as minhas dores
para os longes do infinito…
e para abafar meu grito,
a alma precipitada
corre mais apressada
para o semblante dos teus olhos.

Penso em ti… nesta ausência
da mansidão dos teus afagos
para que não me faltem
os dons da força e da resistência
para vencer cada dia
que passo nesta aventura
entre as savanas de Muidumbe
com a boca em grave secura
e o corpo quase sucumbe
envolvido na amargura
dos dias sem esperança.

Penso em ti… fugindo ao sofrimento
quando os sonhos vão no vento
que me trazem calafrios…
ao acordar de olhos baços
pelo companheiro com os pés frios
que transportei nos meus braços.

Nangololo, Setembro de 1967
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... HERÓIS INOCENTES

Aos que morrem na savana,
trespassados pelas balas quentes
dos soldados inimigos;
deixai-os em paz
no seu sossego além…

não choreis a sua renúncia
à vida que se perdeu no combate
porque há sempre alguém
entre os companheiros
que é o irmão mais leal
para combater esse mal,

não lhes deis o som dos tambores
nem brilhantes medalhas…
não há nada que tire as dores
das póstumas condecorações
decretadas pelos canalhas
que obrigam às incorporações
de mais fornadas de contingentes
para os navios atulhados…

deixai descansar esses valentes
e sustentai os filhos desamparados.

Beira, Março de 1968
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.... AS DESVENTURAS

Ele chegou perturbado, sem fôlego.
Comovido, eu lhe disse:
- Fala companheiro, descarrega
as desventuras, anseios, medos...
não te deixes evadir pela solidão
destes inóspitos lugares, degredos.

Não penses nas amarguradas horas
dos dias cor de chumbo
lança fora a desdita, sem demoras,
para sentires outro fulgor,
o mistério das florestas absorve
qualquer presença da dor
e os impulsos emotivos, ingénuos,
opõem-se aos estilhaços cortantes
estancam o sangue nos corpos marcados
e travam a força do açoite
que nos humilha em cada noite...

Nangade, Outubro de 1966
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.. DESAPARECIDO

Minha amada desalentada,
vi nos teus olhos angustiados
a descrença no meu regresso!
Depois do meu embarque
perdi a ternura dos gestos
que nos deixavam felizes.

Desapareci sem um adeus
e só as lágrimas caprichosas
me lembram os teus suspiros…
não te vou dar queixumes
dos sonhos que se desfazem
nesta vertigem da guerra
onde se geram tensões
e o destino é cada picada
que percorro aos baldões.

Minha amada na sombra
do sol que nos alumia,
solta-te como uma pluma
para que vivas cada dia
longe do inferno medonho
que são as horas de medo
a destruírem o meu sonho;
não quero que faças segredo
nem vou ficar zangado
se viveres bem o teu fado.

Luanda, Outubro de 1961
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.. DESALINHADO

Esta não será a última noite
invocando o patriótico dever:
- desflorar a mata virgem
deixando a nua sanzala arder.

O silêncio do nosso querer
acelera a pulsação do medo
que nos faz calar a voz!
em cada nova emboscada
perdemos um pouco de nós!

Renunciar? pela vez primeira
só na insónia da noite assexuada
quando a dor insemina o cérebro...
porque esta não será a derradeira
se nos batermos como demónios!
E a bissectriz do ângulo da razão
que o mundo inclinado nos aponta
encrava os nossos neurónios...
vai metralhando o pensamento
com a nova ordem que desponta
desajustada ao rumo do vento.

Quem discordar da emboscada
ou recusar o facto da destruição
dentro das grades do desterro
jamais terá direito a opinião!

Macomia, 12-04-67
Joaquim Coelho
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... ARMADILHAS

Frente à morte
estão proibidos os enganos
na espoleta que mastiga os estilhaços
que decidem, cortando,
se continuamos a respirar!

Antes do estrondo armadilhado
o matraquear das costureirinhas
desguarnece os ouvidos
e o corpo atirado para um buraco
mantem tensos os sentidos
e os arrepios no coração a latejar
espicaçam os olhos já cansados
daqueles que conseguem respirar.

Maúa, Março de 1967

Joaquim Coelho
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... DESGASTE

Com tanta chuva na picada
a natureza corta o caminho à morte
e nós cortamos a direito para o norte
onde fica a Mutamba recatada.

Camuflados encharcados
e as gotas teimosas nos olhos
as botas espicham o lodo
pelos furos do desgaste
que apressa a respiração;

quebrado o operacional silêncio
fica a penúria dos colhões
atrofiados nas virilhas
dos corpos aos trambolhões
neste rasto de tormentos
onde as mochilas encharcadas
desfazem os alimentos
no enredo das enxurradas.

Mutamba dos Macondes, Outubro de 1966

Joaquim Coelho
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.. CAMINHOS RASGADOS

Entre mim e vós há a distância
onde dormem animais sossegados
e há matas com muita guerra
nefastos interesses de ganância
por estes caminhos rasgados
à força das brutais explosões.

Entre mim e vós há um continente
enclausurado entre belezas e degredos
e um rio que chora por mim
quando lhe atiro os meus medos.

É o Messalo que me refresca
nos dias que o visito
e encho o cantil nos rochedos
enquanto expulso um grito
oprimido com os meus segredos.

Porque há distância na terra
da África sempre aprazível,
vivo com os camaradas da guerra
que são uns valentes soldados
entre o rio e a mata de brenha
rasgamos as trevas separados.

Nangade, Agosto de 1967

Joaquim Coelho
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... SOLAVANCOS

Sem saber os caminhos, voei
para o espaço inesperado…
lá longe ecoavam os clamores
e saudade fustigava duramente
o sono do meu abandono
por terras que nunca imaginei.

Fui vivendo aos solavancos
alarmado com os ventos
que arrebatavam as forças
bem dentro da realidade
entre clamores e gemidos
senti bem os açoites, tantos!

Sem fingir que estava alerta
com os companheiros em redor
respirando entre a poeira
que roubava a vida por dentro
e deixava a garganta deserta.

Depois de tanto abandono
a ofender a solidão, em Miteda
ninguém fugia à missão
mais amarga ou azeda
nem reclamava contra a chuva
que molhava até ao coração
em cada picada inundada
onde dormia sem sono
no meio da terra sem dono.

Mueda, Setembro de 1967

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