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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Poemas em Tempo de Guerra 10

IN MEMORIUM

Ó companheiro, como podes entender
a razão das cargas de artilharia
que explodem nos morros de Quicabo,
quando o teu corpo já a desfalecer
te mata a esperança de ver o dia?

Ficou decepado o esforço na convicção
de cumprires um dever com valentia,
quando o destino cruel e inseguro
te cortou a seiva na veia do coração
e te deixou entregue à fatal letargia.

É uma luta que nos marca o futuro
e todos os dias traça a nossa sorte,
este arrastar nas picadas dos Dembos,
um caminho sempre incerto e duro
com vários matizes da cor da morte.

Nesta luta flamejante e tenebrosa
na fatídica emboscada ardilosa
a sanha da morte foi vencedora:
o Quiquiri sentiu as derradeiras dores,
enquanto colhia as flores
fugiu-me uma lágrima desoladora.

Quicabo, Março de 1963
Joaquim Coelho
«««««««««««
.
... GRAVE HUMILHAÇÃO
.
Um corpo sem emoções fica amorfo
como o estrume que ainda adoba a terra!
Quem poderá esquecer as emoções da guerra,
as caminhadas para o infinito das planícies
e as picadas nas vastas florestas de África,
onde sofremos inquietações sem medida.

Onde estão os rostos que se banharam
nas lágrimas tristes da despedida?…
e os lenços a acenar no cais de embarque,
ou os braços teimosamente abraçados
aos ente queridos que embarcaram
contra a vontade do tempo da sua sorte...
- talvez fosse o embarque p’ra morte!

Quem esqueceu o som do porão do Niassa
quando dava as braçados no rio Tejo?
a memória é chama que não passa
sem lembrar as marcantes emoções
carimbadas com o sabor do último beijo
já com a saudade a inflamar as paixões!…

O soldadinho podia regressar encaixotado
- enrolado na bandeira dos heróis -
com um louvor a atestar que o coitado
teve azar quando entrou nos paióis!
E pelos seus feitos mais nobres,
a familia teria medalha no 10 de Junho,
com direito à pensão dos pobres,
que o Salazar atestava pelo seu punho.

Em vez do orgulho reconhecido
aos sobreviventes destas jornadas,
lastima-se o esforço imerecido
de tantas vidas por aí abandonadas.

Sente-se muita frieza encoirada
nas rudes memórias enraivecidas;
uma vergonha no medo encapotada
das verdades mal percebidas.

É tempo de mostrar a toda a nação
o sonho destes homens-soldados:
acabar com a grave humilhação
para serem livres e não castrados!

Luanda, Fevereiro de 1963
Joaquim Coelho


... ROSÁRIO DE SAUDADES
.
Lá longe, no país dos meus sonhos,
há tantas vidas desnutridas
muitas almas incendiadas
e miúdos que não vão à escola!

As estrelas alumiam as searas
que mãos inspiradas no trabalho
tentam transformar em pão.

Em cada tarde de canícula
sinto que o corpo resiste
à guerra que não dá tréguas.

Não tenho nada para dissipar a dor
que envolve a alma no novelo
da conjura dos tempos sem amor…
é um ciclo brutal e desumano
a defraudar a esperança
na árdua tarefa de dominar o terror.

A força desta crença é persistente
e inspira a razão da vontade
que se afirma em cada combate
prolongado até de madrugada;
a agonia dos corpos feridos
atiça a raiva que acorda
a realidade dos mortos consentidos
na voragem da brutal explosão.

E lá longe, onde o povo geme
à míngua do sustento a pão,
libertam-se os nobres sentimentos
dos que querem defender a Nação.

Ficam os sinais do massacre
encravados nas nossas memórias
e na alma, um rosário de saudades.

Negage, Maio de 1962
Joaquim Coelho
#########
Poema à professora Maria Ondina Braga:
...
.. ONDINA
.
Silenciosamente
flutuando de mansinho
eternamente…

sobre a água delicada
vai a vida, perdida
quase triste
lentamente
morrer desamparada.

Mágoas despidas
nas águas não as tem.
Sombras incertas
mistério do amanhã
é o que resta
na folha amorosa
que espera ansiosa
o encanto do vento
nas águas agitadas
docemente…
o momento a rigor
de repente…
o deus do amor!

Luanda, Abril de 1962
Joaquim Coelho
.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 25

.. OS DESTERRADOS

Miteda de trincheiras recortada
Onde todos os dias são contados
Em desespero da vida amortiçada
Nos homens de corações aterrados.

Dores plangentes do porvir
Que aos soldados dão tristeza
Quando a vontade de partir
Se funde na miséria da pobreza.

Nos caminhos distantes e inseguros
Os corpos avançam torturados,
Quando a impunidade dos maduros
Maltrata os seres desumanizados.

Enfrentamos a aspereza do capim
Granjeando laivos de vida e rumo
Para o abismo que espera por mim
E ensombra a razão do meu prumo.

Os olhos turvados, semi-cerrados,
Não atinam com o desejado bem
Porque a malícia dos refinados
Limita o horizonte a quem convém.

Porto Amélia, Janeiro de 1967
Joaquim Coelho
#########
.
.. DETONAÇÃO

Tanta dor e sofrimento a desabar
por cima dos corpos que respiram
o sentimento da negação a gritar
ao longo das picadas de Miteda…

ao ver o estrago da granada detonada
invoquei aos deuses da selva densa
que nos libertem da besta assanhada
até nos aliviarem deste inferno
para que o sol e alguma esperança
sare as feridas que nos doem…

enterrados os mortos na santa campa
e entregues à liberdade das aves
amparámos os feridos graves…
enfermos duma estranha guerra
já embarcam para a sua terra.

Miteda, Julho de 1966
Joaquim Coelho


.. SAUDOSA MUSA

Como uma estrela cadente
passaste fugaz no meu caminho,
foi um tempo bem vivido…
e tu soltaste-te da minha vida
como uma estrela na constelação
que se apagou no espaço da emoção.

Se acaso pudesse encontrar-te
entre tantas outras estrelas belas
revolveria o mundo até ao eixo
e ao encontrar-te saudosa musa
saberias o mal de que me queixo
por ter regressado à terra lusa…
mesmo que as balas assustassem
tivemos tempo para a despedida
junto ao mar que nos separou
na derradeira carícia consentida.

Lourenço Marques, Março de 1968
Joaquim Coelho
>>>>>>>>>>
.
.. FRUTA GOSTOSA

Pareces uma ninfa sonhada
de contornos belos e formosos
no palácio das ilusões sentada
minha musa de sonhos gostosos.

Esses teus olhos cintilantes
com o brilho dos diamantes
são duas safiras com jeito
que me deixam satisfeito.

As faces coradas a primor
embelezam os lábios sedosos
e o semblante gentil e sedutor
desperta desejos maviosos.

Esse sorriso que me encanta
na certeza do que mereço
lampejo de amor que me espanta
em cada beijo que não esqueço.

Cada vez que te cingi ao peito
a respiração acelera airosa,
mas dás sempre aquele jeito
servindo a fruta gostosa.

Beira, Dezembro de 1967
Joaquim Coelho
.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 9

... LUTAR É VIVER
.
Quando os ventos sacodem o mundo
e se desprendem novos ideais,
o sangue endurece as veias
dos corpos poluídos e destroçados
pelas mais tenebrosas teias
urdidas nos domínios dos opressores
que tramam a vida dos desgraçados
e causam muitas e variadas dores.

Ao ver os olhos tristes e molhados
com lágrimas furtivas e cruéis
sinto que o declive dos morros
nos quebra os derradeiros anéis
da vida que nos liga à terra
perdidos nas picadas de Quitexe
sentimos os horrores da guerra
metralhando o lado da vertente
dentro da alma que a gente sente.

O movimento de forças estranhas
causa estranheza e alguma intriga…
alguém anda a comer as entranhas
dos corpos corroídos pelo tempo
onde o cacimbo causa fadiga!

Enquanto somos, para viver
lutamos contra o tormento
que em nós faz parte do querer.

Quitexe, Novembro de 1962
Joaquim Coelho
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.
.. NOITES DE SAUDADE
.
Cai a noite na sanzala do Piri
e o cacimbo arrefece o corpo vivo
aos soldados que estão aqui
nas terras do café, em Quibaxe,
cobertos pelo manto da saudade
esperando que o corpo relaxe
e aceite tudo com normalidade.

Lembranças nas memórias, espelhos,
dos passos em volta do destino
entre a angústia e a esperança
de voltar aos sonhos de criança
sentado no colo de minha mãe
a quem chamo minha santa
mas com saudade, tanta, tanta.

Amor que ficou chorando no cais,
só me resta a saudade do beijo…
sem saber se a encontrarei mais
tantos são os dias de abandono
sem aquele amor que protejo
fazendo promessas ao patrono
para que acabe esta ansiedade
e eu possa viver em felicidade.

Quibaxe, Novembro de 1961
Joaquim Coelho

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... NOITE SERENA
.
Como as flores adormecidas
nos canteiros do jardim,
as nossas mãos aquecidas
numa ternura sem fim
afagam com amor profundo
e os corações ternos a vibrar
perante os olhos do mundo,
sabem como é bom amar!

Gostosa amora morena
plantada na minha vida,
tens a verdura da açucena
e sensualidade sem medida,
tonalidades de todas as cores
para adornar nossos sabores...

Serás a minha princesa
com a graça de nosso senhor
porque creio na certeza
da força do sublimado amor.

Estás sempre comigo, eleita
encarnação dos meus sonhos
porque a felicidade espreita
cheia de encantos medonhos.

Espero um futuro risonho
na vida tranquila e feliz
para viver aquele sonho
e ter aquilo que sempre quis.

Luanda, Fevereiro de 1963
Joaquim Coelho
>>>>>>>>>
.
LUANDA, até ao amor
Em poucas semanas percorremos um longo e sublime caminho até ao amor. Sem definirmos condições, deixámos que uma amizade fragmentada em períodos de fraca intensidade de afectos e infinitas variantes nos encontros nos conduzisse ao cosmos onde o amor produz a alegria que nos conforta o corpo e contamina a alma. Sem caprichos emotivos, sinto um envolvimento contagiante a despoletar o poder dos desejos condensados na pertinência das vontades. Cada momento dos encontros aumenta em nós o desejo de identidade que mais nos aproxima do estado de plenitude que a alegria sentida produz.
.
... NO JARDIM DO COSTUME
.
Ainda com o corpo cansado,
passo pelo jardim do costume!
Chupo um rebuçado de mentol
sem perceber que estou enamorado.

Pendurado no sabor da esperança,
ali fiquei o fim da tarde…
a brincar com os queixumes
e gemidos do meu coração!

A ausência propícia as traições
se há compromissos envelhecidos…
Apoiado na dolorosa verdade
fiquei sentado no sítio do costume!

Tu chegaste visivelmente triste…
o teu corpo abrasava como lume
e logo apoiaste a cabeça no meu ombro.

Teus olhos irradiavam sofrimento
contraída de encosto ao meu peito
manifestavas grave estado febril.

Perplexo e mal refeito da emoção
senti os olhos em comoção…
tranquilizei-me nos teus lábios
e fiquei embriagado de beijos
sabendo que os glóbulos sábios
ajudem a temperar os desejos.

Luanda, Maio de 1962
Joaquim Coelho

.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 24

.. A DESCRENÇA
.
Este meu partir para o combate
inigmático… em busca duma razão
para atestar a causa de quem se bate
numa guerra decadente…
como os demais, parto descontente
por saber que há monopolistas
que atiçam os retrógrados colonialistas.

Deixem crescer a natureza do capim
e abandonem o fogo das armas
que levam aos caminhos da descrença.
Há uma forte razão em mim
na convicção da nossa presença;
mas os canhões nada produzem
e as balas não são boa sentença.

Trocar a metralha pelo pão
e perceber quanto a guerra é injusta
não é nenhum acto de humilhação
nem ficamos sujeitos à ameaça
do destino apagado e cruel
que causa fome e muita desgraça.

Mueda, Janeiro de 1968
Joaquim Coelho
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.
.. SEPULTUS
.
Até a fuga dos espíritos é atribulada
quando os corpos agonizam na picada!

Sentem-se nos macabros sinais
dos caixões, vetustos e bizarros
despidos de adornos formais...

Então, lá das profundezas
sai um grito agonizante
e uma voz longa, bem no fundo,
quebra o silêncio dilacerante:
Anda... cadáver imundo!
toma tua espada de fel
e destrói teu destino cruel...”


E um corpo putrificado
perdido no invisível da escuridão
deixa os adornos da sepultura
e brada firme, mas resignado:
Senhor, se tens compaixão
pelos que sofrem amargura,
faz desaparecer a ingratidão
que semeia o ódio e a miséria,
que haja paz e não a guerra
e deixem-me na sepultura
onde por descuido habito
...”

Terminado o fervoroso grito,
mais combatentes partiram...
voando por cima dos túmulos
quatro corvos fugiram!

Mueda, Setembro de 1966
Joaquim Coelho



.. MISTURAS CONCLUSIVAS
.
Juntei muitos dias de sofrimento
nos confins da selva maconde
alguns momentos de amargura
na hora de enterrar os mortos
espalhei os olhos na savana insegura
longe da pátria penitente
imaginei um mundo para toda a gente
espalhada no imaginário do universo;
incentivei os indigentes desertores
da generosa ideia de progresso!

Caldeei a alquimia para ver a reacção:
explodiram as lágrimas de raiva
derramadas sobre as espingardas
olhos tristes daqueles soldados
em bebedeiras de confusão...
tristonhos fantasmas fardados
com pensamentos longínquos
mártires dos feitos antepassados.

Destilei a ilusão na castanha de caju
e descobri o cruzeiro do sul...
vislumbrei a rota para o regresso;
vou voar serenamente no céu azul
e distribuir tudo o que mais peço.

Nacala, Agosto de 1966
Joaquim Coelho
###########
.
.. AMOR PERDIDO
.
Valeu a pena abrir os olhos
ao ouvir o rumor do vento uivante
sussurrar nos meus ouvidos…
foi precisamente nesse instante
que te abeiraste do meu rosto
e atiçaste o fogo da paixão.

Não disseste uma só palavra
que desgostasse o meu coração,
devolveste-me a esperança
que as aves já desperdiçaram
nos seus voos desordenados
por cima da minha cabeça.

Ainda sinto o perfume nos dedos
por tocarem as mãos aveludadas
que me afagaram o rosto
em jeito de sublimado amor,
gestos que não vou esquecer
enquanto souber bem viver.

Antes de partir, o meu sonho
delineou um futuro promissor:
recuperar o tempo perdido
em cada momento que disponho,
deixar as convulsões do mundo
aos cuidados da justiça
e que o sentimento profundo
nos resguarde dessa liça.

Despido das terras de África
vou deixar a tua mão…
o olhar não faz mais sentido
e estás ausente nesta ilusão
porque o poema é indiferente
á dor que sinto no coração.

Beira, Março de 1968
Joaquim Coelho
.

sábado, 7 de agosto de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 23


.. HORA DO CAOS
.
O tempo respira a angústia do dia
em que quis melhorar a harmonia
das imagens guardadas na cabeça.

Não vou inventar o drama que pareça
confrontar o mal e o caos da guerra,
nem os corpos esfacelados a fugir,
espalhando o sangue pela terra!

Estaremos numa guerra a fingir...
com soldados espetados no chão,
estilhaços cortantes como espadas
que vão ceifando as nossas vidas
embarcadas num estranho avião?

Sagal, Junho de 1966
Joaquim Coelho
»»»»»»»»»»»»»
.
... ESPAÇO FRIO
.
Sofro por causa da cruel certeza
que mata em cada manhã suspensa
das estrelas que se deslocam apagadas
e me deixam nesta escuridão… só!

Deparo com mais um corpo na tumba
à espera que a agressão sucumba
aos combatentes que metem dó.

O combate é duro, para sobreviver,
aos ruídos da raiva que agudiza o saber
e assimila a razão das dúvidas;
as vozes camufladas explodem
na subversão lógica das gargantas
que contestam o espaço insubmisso
dos mortos no meio das machambas.

Nos rostos dos companheiros tensos
desliza a raiva no ranger dos dentes…
serão estes sinais suspensos
que nos fazem seres diferentes?

O reflexo do aconchego dos corpos
que dormem à míngua dos deuses
não me deixa descansar no sono
que preciso reparador e calmo.

Olho ao longe… vejo as fronteiras
que tenho de passar aos solavancos,
desafio a mordaça que me oprime
e arrisco ser enjaulado na verdade
que a convicção fervorosa redime
na fria brandura da solidariedade.

Estreitam-se as malhas da opressão,
causa da minha tristeza e revolta,
ao escrever os sinais da convulsão
em cânticos da liberdade que conforta
a minha alma em cada amanhecer…
nos labirintos da guerra vou sobreviver.

Macomia, Abril de 1967
Joaquim Coelho






.. CARTAS AO VENTO
.
Quero viver a ironia do equívoco
como quem se afoga
na verdade do sofrimento...

antes de mim, companheiros,
outros vegetaram... e o seu lamento
ecoou pelas savanas,
grito dos heróis verdadeiros
com os corpos em pantanas!

Enquanto equivocado,
estou à mercê da tragédia
das brutais emboscadas,
e também sofro um bocado
quando já sinto a masmorra
como as almas penadas.

O vento sopra noutro sentido
e já os salazarentos se afundam…
não me tirem o que é permitido:
os sentimentos que abundam.

M. Praia, Setembro de 1967
Joaquim Coelho
########
.
.. DESPERTAR
.
Nesta amálgama de fantasia
ensombram-se os sinais de alegria
traçando linhas divergentes,
razão de tantos descontentes,
quando sentimos fugir o tempo
num dialogo morno, sem alento!

Porque estamos a ficar distantes
do sentimento dos amantes,
e do rumo que a vida nos aponta
é tempo de reflectir, tirar a conta,
e render honra à evidência
que nos faz pensar com prudência.

Na hora do entardecer venturoso
ficámos como o pássaro ditoso
a olhar o abismo da incerteza
e presos no palácio da vileza…
se a vida não vislumbra felicidade,
vai amor… acarinha a liberdade.

Tenho vontade de subir ás estrelas
aproveitar as coisas mais belas
e combater o premente capricho
que envolve a vida no lixo.
Antes quero uma pétala florida
e um coração para me dar guarida.

Beira, Agosto de 1967
Joaquim Coelho
.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 8

.. NOVOS VENTOS
.
Não é preciso ser um iluminado!
basta perceber o fogo cruzado...

a essência da transparência do sol
mais cintilante na cidade aberta
e as ideias da gente feliz;
o sonho iluminado sempre acerta
na verdade que deus quis.

Enquanto caminho na escuridão
encontro gente ainda triste
vagueando na contra-mão...
com pensamentos amorfos, afogados
nas bebedeiras de tanto infeliz,
perdidos, quase tresmalhados,
nos rastos de qualquer demanda
que os tire das noites de Luanda.

Vejo os camaradas inconformados
crispados pela estranha euforia,
sem grande vontade de combater...
sofrem dos perigosos desalentos
e das traições de cada dia:

são graves os insultos e os tormentos
da cidade às matas de cada alvorecer
mesmo com a afronta dos novos-ricos,
em qualquer dia podemos morrer
porque entendemos a força dos ventos
que vai partindo as asas dos penicos
mas ficam livres os pensamentos…

O imparável evoluir das armas inimigas
nefasto efeito da cumplicidade
aumenta a dor das nossas fadigas…

Adensa-se uma grave intriga na cidade
que nos causa intensa dor difusa:
atiçam ondas de ódio contra a malta,
desde os bares até aos Coqueiros...
porque nos toca fundo, sem recusa,
aceitamos o gozo que nos faz falta!

Bem longe dos ambientes foleiros,
contemplamos o corpo da moça bonita,
mística de encantos brejeiros
e nele mergulhamos em dose infinita.

Quicabo, Abril de 1962
Joaquim Coelho
««««««««««««
.
... NEBLINA VERDE
.
Há sempre uma estranha emoção
quando entramos em nova missão!

Ao longe, a Pedra Verde atemoriza;
seus cumes quase tocam as estrelas
e a primeira tentativa de incursão
deixa em nós uma ideia indecisa:
porque se amachucam as flores belas
que a persistente neblina em união
alimenta na verdejante encosta?

A distância para a conquista da colina
é uma paixão determinada e paciente;
os aviões bombardeiam sem resposta,
as bombas paridas do seu bojo
rasgam as rochas... esconderijos
e o fogo alastra no capim rasteiro
com gritos longínquos da morte.

Mordemos os lábios numa inquietação
enquanto se aponta o morteiro
no milimétrico tiro de sorte
para ajudar na diabólica devastação.
Rasgámos o caminho até ao covil,
contra o sol que se inclina embriagado,
e a vontade de silenciar o inimigo
faz-nos avançar no seu encalço
mesmo correndo o grave perigo
de sermos apanhados no percalço
das fatídicas emboscadas dos estupores.

A noite aproxima-se negra e sombria
e mais se aguçam nossas dores...
alguns já dormem com a boca fria
e toda a caravana esmorece a praxe.
O arrojo alarga a perigosa viela
para os movimentos do Úcua-Quibaxe;
é como se abrisse mais uma janela
para passarem cargas de esperança,
nas viaturas da terrível caminhada,
em peregrina missão de bonança
até aos confins da encruzilhada.

Quicabo, Junho de 1962
Joaquim Coelho



.. SAUDADE DUMA CARTA
.
Escrevo esta carta
para mitigar minha dor
e apagar a saudade
que me atrofia os dias
confrontado com a verdade
da lonjura do espaço
onde deixei meu abraço,

não vou limpar da memória
os dia bem passados
nas escadas das Fontainhas
e nos bailes de S. Vítor
a comer saborosas sardinhas,

parecíamos dois passarinhos
a saltitar as escadas
para descer até à linha
e ver passar os comboios
sobre a ponte D. Maria,

não sei se voltarei um dia
levado pela tua mão
como me animavas outrora
nos bailes de S. João,

só espero uma carta tua
antes de seguir para o norte
com um beijo de consolação
para melhor enfrentar a morte.

Bembe, Fevereiro de 1962
Joaquim Coelho
########
.
... MARIPOSAS
.
O encanto das formas do corpo
engravidam o olhar dos transeuntes
que não encontram desejos de amar
e vivem longe das madrugadas
em que se exalta o amor…

só quando olhamos o infinito
percebemos a razão do encantamento
das mariposas na dança sensual
dentro do olhar profundo
das divindades dos sonhos
que invoco nas noites de amor.

Há gestos indecifráveis
sempre disponíveis para restituir
o brilho às noites com luar
nas águas mansas da Baía,
as mãos passeiam serenamente
nos cabelos sedosos da donzela
que sobressai duma figura
projectada na porta do Baleizão…
as mãos afagam com doçura
as carnes mimosas, em combustão
até à colheita do amor.

Luanda, Agosto de 1962
Joaquim Coelho
.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 22


UM TERRÍVEL ABANDONO
.
Ouvi o rumor do vento
atravessando as savanas...
enquanto descia a noite
o silêncio dos companheiros
abanou o milho das machambas
regadas com o sangue vermelho
que a morte verteu na fatídica hora!

Ninguém pode sair daqui p’ra fora!
os corpos esgotados...
abandonados na terra pardacenta
que cavámos para refúgio
das consciências tensas...
ali mesmo sente-se a morte lenta
a sugar o sangue derramado
amargurado sofrimento...

Todos perdem a própria razão
surdos ao rumor do vento!
Reprimimos a violenta respiração
e logo o dedo imprime a força
no gatilho percutor da morte.
Mais um que não teve sorte...

Sente-se uma estranha recusa
entrelaçada no vazio das ideias
que nos consomem em terra lusa!
Quero atirar fora estas peias
urdidas por escabrosos vultos
que nos querem assim matar...
joguetes de interesses ocultos
nem os mortos querem enterrar!

Napota-Nangade, 15 de Março de 1966
Joaquim Coelho
««««««««««
.
... MORTE PELA ALVORADA
.
Na trama da sinistra engrenagem
os sons livres na noite silenciosa
incomodam como a pérfida sensação
pousada sobre a cabeça em transgressão
lenta ousadia da revolta
que se atreve ao sacrílego sacrifício
inflamado no cano duma espingarda…

explode a dormência na destruição
dos corpos recusando o fatal destino
da vida presa na brisa da aragem
galopando contra a engrenagem.

O Pinto tomba no chão, baleado…
no vale de Miteda ensanguentado
proclamo a vida contra a morte
equivocado pelos surdos epitáfios
atirados contra a sanha da morte
que vai dizimando esta geração
com lágrimas no silêncio devassado,
sinistras sombras em convulsão.

Vencer a morte é um contra-senso
que da guerra leva mais o impulso
contra a razão pronunciada
no caminho do combate suspenso
à espera de cada nova alvorada!

Miteda, Julho de 1966
Joaquim Coelho


.. RÉSTIA DE SOL
.
Percorro a inóspita selva bravia
resistindo às forças traiçoeiras
e ergo a esperança em cada dia
a minha réstia de sol ardente
a iluminar o bem na mente.

Árdua é a batalha da existência
nas noites com dias recortados
numa sensação de decadência:
muitas picadas armadilhadas
e o horror das vidas destroçadas.

Guerra imunda… um pesadelo
em cada trilho um imprevisto
tal é o medo de ficar no novelo
enrolado na ansiedade presente…
uma voragem que ninguém sente!

Mucojo, 20 de Abril de 1967
Joaquim Coelho
#########
.
... VÃO P’RO INFERNO
.
A vileza que vem da retaguarda
também havemos de vencer
até a maldade dos poderes ocultos
encobertos nos tons da farda
hão-de rastejar e gemer
ao som dos merecidos insultos.

São tais os algozes do demónio
que não mostram arrependimento
vão p’ras profundezas do inferno
onde há-de arder o antónio
que nos trouxe este tormento
das emboscadas ao sono eterno.

Os incautos somos nós
bastardos da pátria sem norte
atirados para a guerra… sós
nestes caminhos da morte.

Sofremos o efeito da desgraça
e da traiçoeira metralha
o fatídico destino traça
em cada iníqua batalha
onde os corpos tisnados
à mercê das balas quentes
ficam caídos e esfrangalhados
sem sequer ranger os dentes.

Antes que a força se esfume
e me deixe nas savanas
vou arranjar fedorento estrume
para enterrar alguns sacanas
que nos fazem verter o sangue
e consentir a devassa da carne;
mesmo com o corpo exangue
peço à populaça que se arme.

A esperança jamais se esgota
nos dias de visível sofrimento;
liquidarei qualquer agiota
que me encurte o movimento.

As boas gentes da retaguarda
hão-de encontrar a coragem
de terem esperança e viver…
nós seremos a vanguarda
para acabar com a vilanagem,
avançar com a revolta e vencer.

Mueda, Janeiro de 1968
Joaquim Coelho
..

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 21

Ó PÁTRIA MINHA

Minha Pátria, minha paixão,
sei que horas amargas virão
longe do tempo presente
com espaços vagos e ideias ignotas
acções audazes inevitáveis
nas límpidas forças do coração
aqui espalhadas nestas palhotas
onde os corpos com feridas irreparáveis
ao criador estendem a mão
em luta contra o tempo da desonra.

Ao sabor das virtudes ainda vivas
vou cavalgando sobre as savanas
sem piedade pela pátria moribunda
onde um dia sabujos escribas
dirão que estas atribulações insanas
foram causadas pela tropa imunda.

As caminhadas dos invisíveis corcéis
de rostos com lágrimas furtivas
ficarão para sempre ligadas
às balofas decisões dos coronéis
que urdiram as logísticas esquivas
e atiraram os soldados às emboscadas.

Ó pátria minha, do coração,
por ti, sinto a fúria da poeira
que me tolhe o corpo cansado,
tento fazer valer a minha razão
reclamando o fim da fogueira
até que o tormento seja extirpado.
Mueda, Agosto de 1967
Joaquim Coelho
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... AI LIBERDADE
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Depois de hoje, o amanhã
será um dia de vitória
e a nossa vivência temporã
será um marco nesta história.

Ninguém acredita que é o fim
porque é tenra a nossa idade
mas esta guerra chama por mim
serei mensageiro da liberdade.

O corpo expande-se pela savana
com o objectivo no horizonte
mas o dia parece uma semana
e esta geração bate-se de fronte.

Há sinais de mudança pelos cantos
onde caminhamos com esperança;
sairemos daqui heróis ou santos
mas sempre cheios de confiança.

Macomia, Julho 1967
Joaquim Coelho





... FANTASIAS
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Abri a porta à fantasia que sinto
nos dias perdidos do sertão,
espaço ambíguo da solidão,
e logo o pensamento cai no labirinto
congeminado dum reino guardado
nas fronteiras do teu corpo inventado.

O gesto não interdita a infracção.
Mergulho na santa ingenuidade
que despertas em lúbricos desejos,
voluptuosas emoções exploradas,
cingido ao corpo da lubricidade
alcova coberta de pétalas e beijos
onde levitam os corpos entrelaçados
- encontro dos momentos sonhados.

Nacala, Junho de 1966
Joaquim Coelho
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... CHAMAMENTO…
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Se soubesse o que tens no peito
fugia desta solidão que me desgasta
e encontrava qualquer jeito
para te comunicar a mensagem
envolta no manto de incerteza;
terminava esta fantástica viagem
e corria ao sabor da natureza.

Sem ti, meu coração está triste
por não encontrar o caminho
e nem a esperança resiste
ao chamamento dum carinho...

Se ainda és a flor que eras,
vou procurar viver a fantasia
deste jardim de quimeras
até que te encontre algum dia!

Beira, Março de 1967
Joaquim Coelho
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