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segunda-feira, 12 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 17

.. GEOGRAFIA DA TUMBA
.
Hoje aprendi coisas sérias em geografia:
a beleza das machambas cultivadas,
com melancias aquosas para a sede
- esta sede que consome o corpo
desgasta a mente e retira a percepção!

geografia dos olhares de cores graves
e o medo nos olhos dos inocentes,
geografia dos gestos com coragem
daqueles que voam como as aves...
geografia do medo acantonado
nos silêncios que nos rodeiam!

Geografia dos mortos enterrados
na indiferença pálida do poder
que nos abandona nesta agonia
- assim aprendemos a geografia!

Enquanto sentirmos pulsar o coração
nenhum de nós apodrecerá nesta terra,
nem o cansaço que nos aperta o peito
será motivo para perder a devoção
e esquecer os sinais da topografia
porque um poder com grave defeito
perdeu a memória da geografia!

Diaca, Outubro de 1966
Joaquim Coelho
###############
.
.. COMBATE DIRECTO
.
Este jeito de escrever o fado
Que o tempo me faculta na vida
Tem o fascínio do amor sonhado
Na perfeição duma rosa florida.

Ténue é o sinal que desponta
Resultante da amálgama ácida
Que infunde as leis dos quanta
Girando com os anjos da galáxia.

O mundo com força criativa
Segue seu rumo em linha recta
Misturando a sensação emotiva
Neste contacto que me afecta.

Mantenho a razão catalisadora
Nos recipientes inertes e opacos
Mas a molécula-átomo propulsora
Dispara imparável contra os fracos.

A ironia do destino me apoquenta
Nos tempos incertos, conturbados,
Chafurdando na terra pardacenta
As vidas com destinos profanados.

Com esforço contra o afecto figurativo
Mas com amor e sincera gratidão,
Vou atenuando o sentimento negativo
Para aumentar a força da regeneração.

Assim combato a fétida letargia
Nesta tragédia de vida e de morte,
Vontade forte e cuidadoso na porfia
Contra a maldição dos trilhos do Norte.

Fechamos um ciclo de fatalidades
Para os corpos pétridos-virulentos
Vitimados nas suas tenras idades
Apodrecem ao calor do sol – nojentos.

Mueda, Outubro de 1966
Joaquim Coelho


... FORA DO JOGO
.
Quando já não acredito na guerra
saio por aí à procura dos generais
daqueles que usam a inteligência
para nos afastarem do perjuro;
não vamos servir de brinquedos
e não sou soldado de chumbo
para se divertirem no jogo
das estratégias contraditórias.

Não queiram alcançar vitórias
que humilhem outras gentes…
podemos ser todos diferentes
para perceber a razão da vontade.

Procuro os homens corajosos
com ideias mais brilhantes
para acabar com os dias dolorosos
dos soldados infantes.

Nacala, Novembro de 1966
Joaquim Coelho
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.. PEDIDOS AO VENTO
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Desejo voltar ao cais de embarque
pedir aos deuses que o vento forte
me leve a navegar com arte…

esperar a suave brisa norte
vogando na mágica canoa…
sulcar o mar da esperança
acreditar que a viagem é boa
e corta a mágoa com a bonança!

Para que não vingue a sentença
daquela vontade casmurra,
a liberdade vai além da crença
de que tudo que mexe é “turra”.

Vou seguir a estrela refulgente
que ampara a leveza da vida…
acreditar na vontade da boa gente
sedenta da liberdade envolvida;

assim como quem acredita
neste caminhar na selva à toa
pedindo o fim da guerra maldita
para poder regressar a Lisboa.

Maúa-Niassa, Fevereiro de 1967
Joaquim Coelho
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sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 5


.. INSÓLITA INVASÃO
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A noite vai alta e agitada
toda a tropa se movimenta,
na pista bem mobilizada
uma bazukada se apresenta.

Uma invasão formigueira ataca
e logo os cães começam a ganir,
aí o sargento Ferreira destaca
a voz firme mandando fugir...

Ainda não vemos o inimigo
e já sentimos a voz da derrota,
pois ser herói é um perigo
e empenho na guerra é janota.

Sinto o queixo junto ao chão
e ouço gritos alucinantes,
atiço a raiva do meu cão
logo avançamos triunfantes.

Na incerteza das soluções...
recolhemos às toscas trincheiras,
abrandam os tiros dos canhões
e ali ficamos como as toupeiras.

S. Salvador do Congo, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
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... DESVARIO IMUNDO
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Aquele soldado rijo e afoito
crente em vingar o massacre
e abater os criminosos mentores
das mutilações escabrosas,
com violações animalescas,
e dos estripadores de inocentes,
não estava embriagado de raiva
mas com sentido de justiça!

Agora, mais calmo e sereno,
percebe a razão da sua sorte
e porque já sente o veneno
das degradantes confusões
que vão espalhando a morte!

Descoberto o covil dos ladrões,
esmoreceu a vontade de lutar
e enfrentar tantos perigos...
porque a Pátria é outro lugar
onde se passeiam os inimigos.

À sombra dos soldados destacados
para os confins do inferno...
desviam-se os víveres dos desgraçados
- alguns já dormem o sono eterno –
nos acampamentos do desterro
onde a vida é um grave erro!

Perante tanto desvario imundo
sinto que sou outra pessoa, atento
às notícias que mostram o mundo
moldado aos exploradores do vento
que vão surripiando esta terra...
e nós vivemos os males da guerra.

Mais cultivado e desperto p’ra vida
vou combater os mercenários
causa da nossa desgraça e morte.
Hei-de cumprir a sina prometida
para difundir os nobres ideários
e regressar a ti, por minha sorte.

Toto, Março de 1962
Joaquim Coelho


.. CARTA do LONGE
.
Aqui onde por descuido vivo, as coisas continuam insípidas e perigosas. Raros são os dias em que não lamentamos a morte de algum militar que enfrenta as vicissitudes da guerra. No entanto, continuo vivo e actuante, crente na bondade da natureza e nas virtudes que nos fazem viver para além do sofrimento. Minha querida, sempre tive esperança de que seremos recompensados com a desejada felicidade. Por isso não vamos desfalecer perante as barreiras que nos limitam as vontades.
.
Estamos em viagem permanente
e não devemos renunciar à vontade
nem à esperança que a gente sente
para alcançar a plena felicidade.

Amar é vencer com afagos
aquilo que nos é querido
é caminhar sobre os lagos
quando a vida tem sentido.

A distância não nos pode fechar
nas encruzilhadas desta guerra
enquanto tiver forças para lutar
hei-de regressar à nossa terra.

E a glória de vencer com amor
está nas virtudes da esperança
que renovamos com fervor
até ao dia da esperada bonança.

O fluxo do sangue ardente
movimenta o coração sonhador
para o aconchego permanente
do meu único grande amor.

Chega de ingrata ausência
nesta sequidão desoladora
vamos reavivando a paciência
até chegar a ternura criadora.

Está próximo o dia sonhado
para que os corpos carentes
promulguem o fim do passado
e nos devolva os sonhos ardentes.

Luanda, Janeiro de 1963
Joaquim Coelho

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... NOITE DO MERENGUE
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Coisa boa, há festa no caniço,
coisa linda onde há magana
noite com mulata de feitiço
corpo em ritmo que não engana.

Sente-se o leve cheiro da mulenda
trespassando o ripanço do beiral
muito vinho e cerveja dá contenda
bem marcada na escaramuça ritual.

Beijos poeirentos nos embalam
suspensos nos lábios dos amantes
e já as mãos de arminho se instalam
na maciez dos tesos seios ondulantes.

O Pinelas já tremia, cacimbado,
com o reabastecimento na mão
correu para o alpendre, excitado
de tanto gozar, caiu no chão!

Olhos malandros no rosto adormecido
e a tonta sensualidade que me cativou
qual bom-bom gostoso e apetecido
que até as mágoas cínicas apagou.

O sortilégio dos afagos perdidos
ao luar íntimo da longa saudade
perdeu-se na razão sem sentido
que transformou a agonia em verdade.

Ternos espaços encurtam a distância
quando trocamos amargura por prazer;
quão irrequieta é a tua fragrância
que acaricia por dentro… e faz viver.

Alegrias e momentâneas amizades
ajudam a diluir o medo das emboscadas
neste rebuliço dos caniços-cidades
longe das balas na selva inseminadas.

Maianga, Abril de 1962
Joaquim Coelho
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terça-feira, 6 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 16

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... A Caminho de MUEDA
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A vida extingue-se no desespero
que explode dentro de nós…
nas picadas de Mueda
por onde temos de caminhar
à mercê da morte violenta
- tão cruel que nos sufoca
e despedaça a vontade de lutar;

os corpos caindo esfacelados
em cada emboscada sangrenta
que os corpos agonizados…
as balas são imploráveis
e alucinam os nossos olhos
acordados com renovada atenção;

ecos da metralha e das explosões
acordam os fantasmas das florestas
e… para que não haja mais ilusões,
ficámos mais bravos que as bestas
que nos fuzilaram a esperança
de sonhar como uma criança.
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Mueda, Setembro de 1966
Joaquim Coelho
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.. DESESPERADOS
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A alvorada em desespero
deixou-nos muito desolados…
não dei mais sangue ao moribundo
porque jaze morto e desalmado
e nada o fará ressuscitar
do seu sono profundo!

Foi perfurado pelo estilhaço
que o matou lentamente
quando a morte apertou o laço
sem nos dar qualquer razão
para tanta desolação.

Agora limpamos os olhos
para banir todos os ódios
que nos querem impingir;

espero que estejas adormecido
e a terra te aconchegue o corpo
para não ficares esquecido
no nosso pranto de dor…

nesta terra dos Macondes
cobro-te com a última flor.
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Miteda, 26 de Julho de 1966
Joaquim Coelho






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... CONTORNAR O CAMINHO
.
Olho o horizonte distante
sem vislumbrar o caminho
por onde possa regressar…
é tormentosa a falta do carinho
que me possa vir animar!

Mas se estás à minha espera
sem saber se o tempo conforta
as lembranças doutra era…
já perdi muito de mim
muito longe da tua porta!

Os devastadores conflitos
no mundo cada vez mais ruim
também nos põem aflitos…
dos mortos ainda ouço os gritos
e das crianças com fome
vem um sinal que me consome.

Crente na força da razão,
vou contornar os caminhos
que me enchem de espinhos
soltar as peias ao coração
e voar com os meus sonhos
fugir aos perigos medonhos
para que as ideias empedernidas
não me agravem mais as feridas.

Mueda, Novembro de 1966
Joaquim Coelho

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.. DIAS NO PLANALTO
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No planalto, terra dos macondes,
domina-se uma grave ansiedade,
ao escutar os últimos suspiros
das brutais explosões…
todos corremos como sentinelas
entrincheirados aos baldões.

Nas picadas viradas a Miteda
os homens ficam sem tempo
para apreciar a suave paisagem
e todo o seu vigor engalanado
em tons do verde da viagem
dos homens vestidos de camuflado,
acordados na manhã assustada
com minas a rebentar na estrada.

Cada alvorada é um pesadelo
para entender as coisas simples
que podem acalentar a coragem
e reforçar o ânimo dos homens
que acreditam nas estrelas
em cada noite que os consome
sem contemplar as coisas belas.
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Mueda, Julho de 1966
Joaquim Coelho
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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 15




... HORAS TRÁGICAS
.
Eis-me prostrado e ensanguentado
com o corpo descaído e esfacelado...
nem a violenta reacção me consola:
arremeço uma granada como esmola
contra a mortífera metralha inimiga;
nem a sombra do cajueiro a dor mitiga
neste meu corpo que lento se extingue
sem sequer dar um ai compensador!
Mas espero que o sofrimento mingue
para abater a raiva e a tormentosa dor.

Rebusco a força que me anima
e transfere a dor lá para o infinito...
digo a deus que lhe perdi a estima!
Nesta tragédia não ouviu meu grito
contra as bombas que deflagraram,
nem protegeu o corpo do Pinto
que os estilhaços dilaceraram!

Ainda circula o sangue que sinto
passar veloz nas veias tensas!
O tenente ferido e desmaiado,
está incapaz de dar sentenças...
vejo o seu rosto desfigurado
com estilhaços cortantes e quentes;
mais à frente, o cenário comovente:
soldados feridos... rangi os dentes
por ver um morto - herói inocente!

Avançou o Pessoa contra a desolação:
por via rádio, decretou a evacuação!

O Armindo, enfermeiro brioso,
enfrentou o trabalho, que era tanto,
com determinação e corajoso,
lá foi atenuando o nosso pranto.

Horas graves para esquecer
não fossem os mortos caídos...
aos feridos só lhes resta viver
mesmo com os sonhos traídos!

Miteda, 25-07-66
Joaquim Coelho
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... DESPOJOS DE GUERRA
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Não choreis os mortos, nem a tormenta
porque a esperança vive dentro de nós;
um segundo de vida frente à emboscada,
pode ser uma eternidade sufocante
mas é este o destino que nos espera
nas terras dos macondes e na savana
onde a dor amarga nos desespera.

O dilema está na honra a defender
e nos valores da pátria de cada um;
há uma verdade que temos a reter:
a nossa pátria está muito longe,
lá na outra banda do mar…

respirar o ar da selva africana
não nos dá o direito de conquistar
e transgredir as leis da razão serena
vivendo o destino a comer a poeira
espicaçada na cubata da morena.

Contemplamos a selva agreste
e sentimos a magia com esperança:
a saudade ataca forte como a peste
e os olhos choram como a criança…

a alegria da vida não volta mais
aos mortos abandonados na terra
porque a pátria sagrada dá sinais
de glorificar os despojos de guerra.

Miteda, Julho de 1966
Joaquim Coelho



... AMORTALHADOS
.
Somos valentes caminhantes do sertão
que a África nos destinou a prazo…
envolvidos no prelúdio da escuridão
caminhamos nos sulcos já pisados
temendo a afronta das minas furtivas
como os combatentes desventurados.

Enquanto somos vivos desenganados
bebemos dos charcos apodrecidos
que servem de oásis nas savanas
nos dias sem chuva… adormecidos
com as vidas levemente estagnadas
aprontamos as vestes do caixão
descarregado da carlinga do avião.

Mueda, Julho de 1966
Joaquim Coelho
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... ESPERANÇA
.
Os meus olhos fixados nas folhas
das árvores que o vento castiga
já sentem a agitação da intriga
lastimosa dos censores;

tentam adivinhar o imaginário
das palavras ainda sem voz,
vão oprimindo a vontade
de atirar para o papel abstracto
todas as razões dum ideário.

Num mundo tão desigual
colho as notícias da verdade
enquanto as folhas das árvores
me dizem em surdina:

- Os sinais são de esperança...
partirás em dia de bonança!

Beira, Janeiro de 1967
Joaquim Coelho
...

terça-feira, 29 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 4

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... SALTO NO ESPAÇO
.
Embarco ao entardecer…
em busca da ventura pressentida
montado no corcel do pensamento
e no ar… com a vida reflectida
na encruzilhada do vento.

O espaço nublado me repele
para o avião que voa longe
e fica num contínuo vaivém!
Recordo o tempo de alguém
que ficou na minha terra
a quem chamo mãe…
e eu, em forma de pássaro
encharcado… na guerra!

Embarco audaciosamente
com a satisfação de vencer
a sensação de medo…
airosamente, salto no espaço
sem qualquer segredo…
alguém me estende o braço
na madrugada do meu querer,
é a ventura…
nas terras de Angola
começo a reviver
uma longa amargura!

Luanda, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
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.. MANHÃ CHOROSA
.
A manhã acordou chorosa!
Já o sol se afirma no horizonte
e eu busco a sombra majestosa
do embondeiro amigo da gente.

A dolorosa notícia agrava as dores
e interrompe o merecido descanso:
sete soldados dos briosos caçadores
foram pelos ares, despedaçados...
com o jeep que accionou uma mina,
logo na hora que o diabo determina!

Fomos em socorro dos desgraçados
que antes uns dias vimos felizes
em camaradagem, juntos no Bembe,
com a prontidão evitámos deslizes;
encontrámos fumegantes destroços
bocados de corpos espetados no chão
fugindo do fogo, os soldados moços
estavam aturdidos pela confusão.

Uma tarde triste, fim de dia choroso
e o traumatizante esmorecimento
contaminou todos os corações;
ninguém foge ao sentir doloroso
mesmo disfarçando as emoções...
escapam-se as lágrimas silenciosas
nos rostos de semblantes marcados
e as opiniões cortantes como lâminas
acirram a raiva contra os culpados!

Sentimos a dor e o grave aviso
- a guerra já galgou mais um friso.

Toto, Abril de 1962
Joaquim Coelho


.. LONGÍNQUO HORIZONTE
.
Confirma-se o encontro dos corpos
em desejos convergentes
gestos profundos, longos prazeres
tão intensos que os nossos olhos
se perdem na lascívia das bocas;

um gozo louco que nos atrai
nesta escuridão amansada...
uma intensa infusão de amores
envolvendo a paixão extasiada.

Com afecto ofereço a gratidão
no momento do merecido devaneio,
esse enredo tecido no coração
é como a esperança do meu rodeio.

A tua imagem emerge na saudade
e o meu rosto escreve solidão…
sei que é grande a tua bondade
e não deixarás de me dar razão.

No meu silêncio... exposto ao sol
que ofusca o longínquo horizonte
lá no mar cor do arrebol
ainda não vejo azimute que aponte
o caminho à caravela arfando
mas o suspiro com voz dolente
escuto-o de vez em quando
no bater deste coração que sente...

E ao som do mais lindo poema
que os meus lábios cantassem
no sonho que tenho presente
da tua boca pequena
límpidos os teus me beijassem.

Negage, Novembro de 1962
Joaquim Coelho
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.. MÍSTICOS ANSEIOS
.
A alegria de viver sem desalento
alimenta os corpos sedentos de amor
que nesta selva, em cada momento,
se batem pela vida com fervor.

Vós, que buscais místicos anseios
derrotando os dias de mais tristeza,
bem mereceis as carícias dos seios
que vos oferecem na alva beleza.

Mas este destino que nos abraça
na gratidão fantástica do querer,
faz parte da vontade que nos enlaça
na patriótica condição de combater.

A vida é dura… com lamentos,
muita esperança e com bondade
venceremos os inóspitos ventos
que tolhem a almejada felicidade.

Luanda, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
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sábado, 26 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 14

.. CONTRASTES DA GUERRA
.
Caminhamos nas matas agrestes
com as fardas esfarrapadas
o corpo empastado nas poeiras
que absorvem as gotas de suor
os pés com bolhas profundas
sem pão e sem nutrientes
bebendo nas poças imundas
restos das águas apodrecidas
que deixam marcas nos dentes.

Nas esplanadas mais vistosas
deliciam-se os senhores da guerra
nos bem servidos banquetes
a transbordar de bebidas
em brindes com gestos formais
aperitivos de corpos enfeitados
nas danças de contorções sensuais.

Entre as brenhas e os trilhos
há homens a sofrer os reveses
na lutar contra o aniquilamento
onde os feridos ficam cadáveres
estendidos no chão de Nangade
em espera de lugares recatados
na lonjura do planalto de Mueda
no lugar onde são enterrados.

Mas, nas savanas mais a sul
o lazer dos mandantes da guerra,
tem os helicópteros desviados
das suas missões rotineiras,
não socorrem os caídos por terra
por causa das brincadeiras
em campanha de caça e veraneio
e o gozo com férias pelo meio!

Os combatentes já deprimidos
sentem-se abandonados e tristes
mas ficam com a dor e o luar
e ouvem os pássaros em surdina…
animam-se com a força de lutar
para mudar o rumo da sina!

Nangade, Maio de 1966
Joaquim Coelho
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.. RASGAR O TEMPO

Eu não consigo rasgar o tempo
que marca o meu consciente.

Sinto o fogo da paixão à liberdade
e o rumo da razão desta gente;
mas não posso mudar as ideias
nem remover esta ansiedade
ainda atada às velhas peias...

Não posso recusar o sol refulgente
nem as estrelas que alumiam o sonho
nos olhos de cada criança inocente,
onde a fome, pesadelo medonho,
sem esperança na piedade adormecida
para alimentar as migalhas de vida.

Resguardo a memória nos versos
que o voo rotineiro fermenta...

Os ecos do protesto dispersos
nas ordens que a vida enfrenta
jamais me obrigarão à cobardia
de abandonar a razão em fantasia.

Aqui no planalto, centro da guerra,
sinto os pés a resvalar p’ra terra!

Miteda, 28-07-66
Joaquim Coelho
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.. ESTILHAÇOS BRUTOS

Hoje ficaste limitado no tempo da tua vida,
amigo trespassado pelos estilhaços brutos.
Só te resta descer à terra silenciosa;
pois o teu corpo em contratempo,
já se despediu desta terra misteriosa.

Tudo o que se procura está no tempo,
na sua consequente naturalidade.
Nada se modifica nas casernas,
e mesmo o sentimento fica siderado
como se fossem homens das cavernas.

Alguns fazem um esforço abnegado,
para combater o velho bigotismo
e acabar com a consentida cegueira
dos louvores ao mais aprumado...
perdida a recta intenção do cinismo
só falta acabar a cósmica pasmaceira.

Os ritos castrenses causam inquietação:
a continuidade das cerimónias dengosas
e as lamechas impúdicas e chorosas,
por quem a morte não teve compaixão.

Mutamba, Abril de 1966
Joaquim Coelho
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... DEVANEIOS NO ÍNDICO

Hoje olhei o Índico transparente
apeteceu-me
procurar as coordenadas do teu coração
apontar no mapa, indiferente,
pareceu-me
vislumbrar o caminho na tua direcção.

Já Mocímboa fica no horizonte
distante
e a tua formosa imagem se reflecte
no céu que fica de fronte
equidistante
do caminho de Mueda, que se repete.

Divagando, vou pintando a alma
multicolor
para que o tempo me seja breve
com suaves tons de calma
amor
a condizer com o que se escreve.

Diaca, Outubro de 1966
Joaquim Coelho

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terça-feira, 22 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 13

Vamos intercalar Poemas de Angola e de Moçambique
.
Entre os Poemas escritos em Angola e os de Moçambique vai o tempo de 5 a 7 anos. A diferença no modo de abordar a guerra, estará nos seguintes dilemas do combatente:
1 - Ao embarcar para Angola fui com a convicção de que a população branca e negra precisavam da nossa ajuda porque estavam a ser massacrados e esquartejados no Norte de Angola (foram barbaramente assassinados cerca de dois mil brancos e seis mil negros, em 1961).
2 - Mas, quando fui obrigado a deixar o curso de Engenharia Electrotécnica, que frequentava na Academia, e seguir para a guerra em Moçambique, por ter recusado mudar para um curso de âmbito militar, já não havia convicção mas a certeza de que o problema da guerra era político e não militar; conhecia bem a pressão internacional e a ganância dos países mais poderosos em se apoderarem das riquezas dos territórios administrados por Portugal.
O descontentamento e o mal-estar marcaram os meus 29 meses em Moçambique. Daí ter passado para o papel os estados de alma nos momentos de maior lucidez e azedume.

... DISSABORES AMARGOS
.
Má sorte ter embarcado em Lisboa
e ter caído nesta selva onde a leoa
me embarga a voz temente ao perigo.
Não sou eu que o digo...
os companheiros desanimados
que se manifestam ameaçados!

O Figueira avança na palhota
ao encontro da solidão;
o Armindo patrulha a mata
em busca do grande leão;
o Mota, bom jagador, faz batota
com o batuque a preceito;
o Coelho... triste, sem jeito
tangendo a viola dolente
para desanuviar a dor que sente.

Sente-se a tristeza do comandante
que se esforça em filosofar a vida,
mas a vida é cada instante
em que o sonho nos dá guarida.
Tento lançar os prantos ao mar
enquanto a esperança me afoita
nas quentes noites de luar,
é um desafio dormir em Nacala.

Contra as ameaças indigestas
a razão da minha voz não se cala...
frente a este movimento feminino,
porta-voz dos ditadores malditos
que dilaceram os corpos benquistos
e afundam a pátria já naufragada
na imensa pobreza acorrentada.

Porque hei-de sofrer os dissabores
e o feito dos males de tanta gente?
Vou afugentar as minhas dores
sem medo de ser diferente...
despertar os corações amuados
do Portugal longínquo, adiado...
bramir o grito dos amordaçados
e despertar o calor do mundo aliado!

Nacala, Agosto de 1966
Joaquim Coelho


... TORMENTOS
.
A noite de sono atormentado
em que dormimos acorrentados
à desgraça da pátria incapaz
de saber se ainda existimos…

abandonados nas terras recuadas
dos milheirais das machambas
onde mergulhámos o desalento
no lodo das incompetências
dos poderes soterrados em S. Bento.

A sorte que nos cabe no momento
já se esboçava no desenlace
que a tragédia adiava aos ousados
entre os combatentes cansados.

O pesadelo é uma eternidade
que a manhã acordou
quando a morte amarfanhou
mais um soldado valente;

o socorro é a ínfima esperança
para nos livrar do tormento
que nos devora os sentidos
para reinventar-mos a vida
que nos foge com o tempo
no prelúdio da sepultura…

O silêncio dos olhares
deu alento à decisão
levar os feridos aos ombros
e caminhar pelo sertão
fugir do ambiente hostil
que nos mordia a vida
alancar até Napota
nossa terra prometida
acertar contas com os sacanas
que nos atiram p’ro inferno
por abandonarem nas savanas
os mortos no sono eterno.

Mutamba dos Macondes, Março de 1966
Joaquim Coelho
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... CORJA DE LADRÕES
.
A força que nos anima na certeza
vibrante dum peito sem emoção
também vence a insídia dos escolhos
que combatemos com firmeza
mesmo que a angustiante comoção
nos deixe as lágrimas nos olhos.

Os lamentos dos feridos silenciosos
são o rancor contra o inimigo astuto
que nos fustiga as doridas faces…
na rectaguarda, colonos asquerosos
transferem os seus bens para o puto,
debandada de ladrões sem disfarces.

Amigo descarnado que padeceste
trespassado pelas balas sem apreço…
corpo jovial, vibrante e moço,
sem vida no rosto, emudeceste…
aos deuses que cortaram a voz eu peço
que te recebam em paz, sem alvoroço!

Mueda, 16 de Março de 1966
Joaquim Coelho
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sábado, 19 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 3

.
.
... NOVOS PADRÕES
.
Ah solo pátrio tão desigual
ao descrito nas letras de Camões;
tamanha ingratidão afunda Portugal
na eterna luta dos canhões!

Os soldados valentes vão lutando
sem a galhardia dos brasões...
ninguém esquece as mães gritando
lá longe... extremosos corações.

Já não se levantam mais padrões
nas selvas que rasgamos, dolentes,
porque os novos filhos barões
têm vontades mais convincentes.

E quando olhamos à retaguarda
sentimos um aperto nos pulmões;
continua a desfilar na parada
um bando de ignóbeis tubarões.

Quitexe, Agosto de 1962
Joaquim Coelho
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... TORMENTO DA VIDA
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A inquietação
no meu destino
atormenta a certeza do porvir,
procuro fugir ao desatino
que a guerra provocou
e perco a visão do caminho
que outrora sonhei
quando peregrino
na cidade deambulei.

O tormento da vida
afigura-se além…
no meio das matas
percalços sem medida
e os milhafres
circulam nos céus
à procura de alguém
que caminha espavorido
e debicam os sonhos meus…

já lhes perdi o sentido…
e a vida neste desdém
traça-me o rumo
que percorro desprevenido.

Damba, Março de 1962
Joaquim Coelho
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... SEM TRÉGUAS
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Absorvo a mensagem da natureza
que promete um dia de sol…
os primeiros passos na mata
em trânsito entre o silêncio
que me arrasta o olhar castigado
pela angústia dos ausentes.

Como um solitário esquecido
nos dias vivo descontente
- porque até as asas esmorecem
e não perdem o jeito de voar…
sinto os companheiros absortos
nos pensamentos das noites de Luanda.

Por isso recusei sorrir à súplica
do olhar das crianças famintas
que ficaram abandonadas em Tabi
- uma dor tresmalhada que senti!
Era um olhar tão frágil e vazio
que até o calor ficava frio
e a fome secava as lágrimas
nos rostos sufocados em sofrimento.

Nem sequer me deixaram parar
para desprender o meu olhar
nos infelizes desprezados pelo vento
que atiçam a minha vontade
de acabar com esta ansiedade
e derrotar os que fomentam a guerra
que os bandidos semeiam nesta terra.

E não vou perder a dignidade
nem dar tréguas aos impostores
porque a gesta desta mocidade
dá lições a muitos doutores.
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Quibaxe, Dezembro de 1961
Joaquim Coelho
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... DESLUMBRAMENTO
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Resguardo no silêncio da memória
o sorriso que resplende a luz
dentro dos teus olhos…
Como um canto de tons lunares
é uma música doce da ventura
que me percorre o pensamento
e deixa deslumbrar o inígma
que incendeia as palavras de manhã,

anoitece e o fulgor da imagem
reflecte-se na vertigem do desejo
o coração esconde-se envergonhado
antes que o trigo desencante a fome
e o corpo dance com as sombras
nas noites calmas dos amantes;

respiro a luz dos teus olhos
tão audazes e penetrantes
que me despertam a vontade
de proteger-te dos abrolhos
que podem causar infelicidade.

Luanda, Janeiro de 1962
Joaquim Coelho
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