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domingo, 13 de junho de 2010

Tempo Presente - Poemas Censurados 2

Continuação dos Poemas Censurados e recuperados:
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. .. CAIS DE EMBARQUE

A manhã submergia da bruma
e já o teu semblante parecia arfar
com a blusa densa sobre os seios
tesos e humildemente rosados
quando a vontade se esfuma
sem tampouco lhes tocar,
quis combinar os suaves meios
de cumprir os dias sonhados!

Apenas pude beber das credenciais
abonatórias da tua beleza…
os olhos a transbordar sorrisos banais
que suavizavam o bater do coração
gravemente inflamado pela vertigem
do embarque para a incerteza
recolhida bem no fundo do porão
onde compreendemos a nossa origem.

Ali espalhados pelo lastro do porto
sentia-se o prelúdio dos desencontros:
namorados em lânguidos suspiros
perdendo as energias do conforto
nos dias tristes e noites de vampiros.

Avançámos ao encontro do mundo
que nos devora sem piedade
enquanto o silêncio tenso e profundo
nos atrofia a crença na felicidade.

Rendidos ao chamamento da guerra
que se abatia sobre os nossos destinos
ninguém se orgulhava do desfile
em trânsito na gare de Alcântara-terra
onde embarquei ao som dos hinos
de cabeça erguida, olhando de perfil.

Limpando as lágrimas furtivas
sentidas nos peitos apertados
acenámos com as boinas punitivas
das razões por que somos embarcados.

Gare de Alcântara, Janeiro de 1966

Joaquim Coelho
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.. AMOR NO CAIS

A lua gravita à volta do infinito
vagarosa, ilumina a noite escura
e eu não cheguei a ver a formosura
na lonjura dos sonhos perdidos…

Um navio atravessa os mares
e daixa os amores nos cais
muitos meses separados
deixam-nos a vida à deriva
o olhar vê longos horizontes
e um lágrima esquiva
vem perturbar os pensamentos
em cada noite atribulada.

A saudade gravita nos olhares
perdidos na imensidão das savanas,
os pássaros da noite me despertam
na alvorada dum dia tenso
dentro da brutalidade da guerra
onde descobri porque se enlouquece
enquanto a brisa nos separa
este amor que imerge nas águas
do oceano da nossa desventura.

Há rumores de regresso à amurada
dando novo rumo à pátria;
será verdade ou é loucura
acreditar que ainda és minha amada.

Luanda, Novembro de 1967

Joaquim Coelho
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.. AEROGRAMA PERDIDO

Quando eu regressar da jornada
que a Pátria me determinou
porei fim a esta angústia
de saber aferir a razão
porque falharam os aerogramas
que me davam a ilusão
de acreditar no amor adiado
como forma de salvação
do coração destroçado.

As vicissitudes são tantas
neste espaço dos medos
que já não sei saborear o amor
nem do teu corpo os segredos
e o coração amarrado
à penúria dum papel
é como um corpo amolgado
antes de saborear o mel.

Não me deixes na solidão
destes caminhos minados
onde se rompem os corpos
feridos e ensanguentados
na tragédia das picadas
perdidas na paisagem
com molduras de espingardas.

Deixa-me olhar a imagem
que um dia te roubei
na planície da juventude
onde desagua toda a verdade
dum amor que nos uniu
na lonjura da distância
que esta guerra pariu.

Não estilhaces o meu corpo
com a arma do silêncio…
a fuga não é razão
para me desamparares
no meio deste sertão…
se os seres nascem aos pares
o meu é par do teu
como o teu é par do meu.

Antes do fim há um sinal
que revela as emoções
de quem anda à deriva…
ainda espero a carta
que me traga a salvação
e o consolo do refúgio
que está no teu coração.

Porto Amélia, Maio de 1966
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.. AGONIA NAS PICADAS

Para os soldados atirados para o mato
os dias são de grande inquietação,
sujeitos a fortes ataques em abstracto
vivem horas terríveis de aflição.

O percurso de Quibaxe até à Zala
é uma jornada de grande tormento
abatises, armadilhas, nem se fala
nas angústias e horas de sofrimento.

São dias e semanas de amargura…
os jovens a morrer pelos caminhos
quando a vida já não perdura
nestas estradas cheias de espinhos.

Galgando densas matas e capinzais
arrastam-se aos tombos nas picadas,
correndo o risco de não voltar mais,
vão altivos e firmes nas caminhadas.

Quibaxe, Novembro de 1961
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... APRONTAR O DESTINO

Aqui perdido na savana,
invento um mar com ondas calmas
o vento e um barco à vela
algumas aves para me acompanharem
e a estrela do sul para me guiar
até à terra da minha saudade.

Não sei se tens o dom de sonhar
enquanto me esperas…
mas sei que não posso prender-te
dentro de mim…
para alcançar a liberdade
tenho que libertar o pensamento
e mitigar o absurdo da guerra.

Lutarei até ao fim
para que a nossa felicidade
se liberte deste tormento
que me faz rastejar na terra.

Tenho que libertar a força
que trago dentro do peito
combater escabrosos inimigos
ladinos como uma corça
na guerra do preconceito.

Mueda, Novembro de 1967
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... TRILHOS DE QUIPEDRO

Somos soldados generosos
embarcados no escuro dos porões
dos navios mais ordinários…
sem certeza do regresso.

A Baía vestida de festa
guarda-de-honra e fanfarra
Luanda virada do avesso
onde fizemos a grande farra.

Depois da confusão da noitada
toda a juventude promissora
avançou no destino marcado;
serra da Canda e Quipedro,
momentos de grande emoção,
com tanto turra assanhado
tinha que haver explosão.

Aos primeiros rebentamentos
vindo dos morros de Quicabo,
começaram os grandes tormentos
e as pernas a tremer, de espanto…
foi atingido o primeiro-cabo
e mais sete soldados mortos
deixa o pessoal em pranto.

Toto, Março de 1962
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.. ROTAS TROPICAIS

Barcos parados no porto de embarque
sem vontade de partir para longe…
que levais no escuro dos porões,
porventura algumas sementes
ou máquinas de trabalhar o pão…
e roupas para os desnudos
que vivem longe desta confusão?

Barco que não sentes a vergonha
de levares os soldados à guerra,
navegas com toda a força bruta
que te mandam as máquinas,
sem veres que as mães em terra
vivem a despedida chorando!

Barco engalanado de gaivotas
onde estão os governantes
amotinados como os agiotas
com laivos de reles ferocidades?
Com a miséria vem a confusão
dentro dos cérebros mudos,
só teremos nova sociedade
na volta dos valentes da nação.

Barco apressado que voltas
dos mares e rotas tropicais
trazes desfraldada a bandeira
das cores rubras de esperança
e regressam os combatentes
cantando os hinos ardentes
como na viagem derradeira…
mas na memória dos ausentes
fica a emoção verdadeira.

Beira, Março de 1968
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.. OS PROSCRITOS

Quando o clarão da aurora esmorece
a força turbulenta das monções
já teu corpo ferido se desvanece
nos abismos profundos dos sertões
das horas silenciosas, sem estrelas…

Não respondes aos efeitos do plasma
que injectamos nas veias feridas…
teus ouvidos ensanguentados, janelas
no rosto desfigurado que não sentes
percebem-se as emoções sentidas
nos olhos lacrimosos dos presentes.

Isto é a tragédia, um descalabro!
Os queixumes graves, quem os ouve?
… os mortos não dão amplexos
gesto comovente e macabro
da desgraça que cai sobre os danados
com os corpos jacentes em Napota
miseravelmente aí enterrados!

Na marcha de regresso ao acampamento
quebra-se o silêncio com metralha
que agrava mais o nosso sofrimento
e corta pela raiz o desejo apetecido
de terminar a razão desta batalha
que nos deixa infelizes e aflitos…
sem acabar com o sono imerecido,
em Mueda já somos proscritos!

Mueda, 17 de Junho de 1966
Joaquim Coelho,
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.. RUMO DA RESTINGA

Aqui desdobrados neste espaço
a ameaça das obsessões paranóicas
destrói o melhor dos sentidos,
razão porque me disponibilizo
contra o imobilismo putrefaciente
inibidor dos fluxos de ideias
sinto o culto da subversão
dos padrões éticos castrenses
nas casernas de elites aéreas
onde há réstias de realismo.

Sem jeito para militar condicionado
entre companheiros desenquadrados,
com uniformes de barro cinzento,
deixo sementes do universo sonhado
mais generoso e sem vaidades
sem a ambiguidade das soluções
mistificadoras da razão da guerra
onde ocultam as imagens perversas
poluidoras do ar da nossa terra.

Sinto os fluxos de energia variada
que a vida tormentosa me oferta
e no espaço ocupado que sobra,
multifacetado de gente bizarra,
invento incursões intencionais
dentro das consciências desabitadas
com imagens mais convencionais
contra a razão da guerra inexplicável.

Liberdade perdida? Que ilusão
me faz obedecer à terra-mãe?
A verdade dentro do coração
Proibe-me de dizer sempre amém!

Os companheiros mortos no caminho
jamais sairão do pensamento
das mães que gritam até ao Minho
clamando suas dores ao vento!

Como é possível tanto sofrimento
no clamor contra a surdez de alguém
que vive para os lados de São Bento?
As nossas dores vão mais além
das forças gratas da emoção
porque pressinto a grave derrota
virando os tempos desta Nação.

Nacala, Junho de 1966

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.. DESAFIO À MORTE

Foge para longe do sentido
enquanto busco o caminho
que um futuro prometido
encorajou no meu desejo
de afagar os sinais da vida
que se apaga lentamente…
.
não escarneças o corpo
que sofre amargamente
enquanto unido à alma
é razão da vida da gente
e o desejo absoluto
de manter a unidade calma
está no espaço que disputo
à morte que me persegue
nos contornos do combate,
.
mesmo vestida de grinaldas
não vou cobiçar-te as feições
esculpidas no horizonte sombrio
que anda a desafiar-me…
aos tombos, aos baldões
nas emboscadas, o calafrio
onde passas, fugidia
não tentes surpreender-me
… marca encontro
p’ra outro dia!

Nangade, Setembro de 1967
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.. AS MINHAS DORES

Penso em ti, solitário
cumprindo o meu fadário
nas horas sofridas…
nas matas de Miteda,

horas de dor e amargura
que compartilho, em memória,
(porque não me sai da lembrança)
o bálsamo dos teus odores.

Assim escorraço as minhas dores
para os longes do infinito…
e para abafar meu grito,
a alma precipitada
corre mais apressada
para o semblante dos teus olhos.

Penso em ti… nesta ausência
da mansidão dos teus afagos
para que não me faltem
os dons da força e da resistência
para vencer cada dia
que passo nesta aventura
entre as savanas de Muidumbe
com a boca em grave secura
e o corpo quase sucumbe
envolvido na amargura
dos dias sem esperança.

Penso em ti… fugindo ao sofrimento
quando os sonhos vão no vento
que me trazem calafrios…
ao acordar de olhos baços
pelo companheiro com os pés frios
que transportei nos meus braços.

Nangololo, Setembro de 1967
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... HERÓIS INOCENTES

Aos que morrem na savana,
trespassados pelas balas quentes
dos soldados inimigos;
deixai-os em paz
no seu sossego além…

não choreis a sua renúncia
à vida que se perdeu no combate
porque há sempre alguém
entre os companheiros
que é o irmão mais leal
para combater esse mal,

não lhes deis o som dos tambores
nem brilhantes medalhas…
não há nada que tire as dores
das póstumas condecorações
decretadas pelos canalhas
que obrigam às incorporações
de mais fornadas de contingentes
para os navios atulhados…

deixai descansar esses valentes
e sustentai os filhos desamparados.

Beira, Março de 1968
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.... AS DESVENTURAS

Ele chegou perturbado, sem fôlego.
Comovido, eu lhe disse:
- Fala companheiro, descarrega
as desventuras, anseios, medos...
não te deixes evadir pela solidão
destes inóspitos lugares, degredos.

Não penses nas amarguradas horas
dos dias cor de chumbo
lança fora a desdita, sem demoras,
para sentires outro fulgor,
o mistério das florestas absorve
qualquer presença da dor
e os impulsos emotivos, ingénuos,
opõem-se aos estilhaços cortantes
estancam o sangue nos corpos marcados
e travam a força do açoite
que nos humilha em cada noite...

Nangade, Outubro de 1966
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.. DESAPARECIDO

Minha amada desalentada,
vi nos teus olhos angustiados
a descrença no meu regresso!
Depois do meu embarque
perdi a ternura dos gestos
que nos deixavam felizes.

Desapareci sem um adeus
e só as lágrimas caprichosas
me lembram os teus suspiros…
não te vou dar queixumes
dos sonhos que se desfazem
nesta vertigem da guerra
onde se geram tensões
e o destino é cada picada
que percorro aos baldões.

Minha amada na sombra
do sol que nos alumia,
solta-te como uma pluma
para que vivas cada dia
longe do inferno medonho
que são as horas de medo
a destruírem o meu sonho;
não quero que faças segredo
nem vou ficar zangado
se viveres bem o teu fado.

Luanda, Outubro de 1961
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.. DESALINHADO

Esta não será a última noite
invocando o patriótico dever:
- desflorar a mata virgem
deixando a nua sanzala arder.

O silêncio do nosso querer
acelera a pulsação do medo
que nos faz calar a voz!
em cada nova emboscada
perdemos um pouco de nós!

Renunciar? pela vez primeira
só na insónia da noite assexuada
quando a dor insemina o cérebro...
porque esta não será a derradeira
se nos batermos como demónios!
E a bissectriz do ângulo da razão
que o mundo inclinado nos aponta
encrava os nossos neurónios...
vai metralhando o pensamento
com a nova ordem que desponta
desajustada ao rumo do vento.

Quem discordar da emboscada
ou recusar o facto da destruição
dentro das grades do desterro
jamais terá direito a opinião!

Macomia, 12-04-67
Joaquim Coelho
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... ARMADILHAS

Frente à morte
estão proibidos os enganos
na espoleta que mastiga os estilhaços
que decidem, cortando,
se continuamos a respirar!

Antes do estrondo armadilhado
o matraquear das costureirinhas
desguarnece os ouvidos
e o corpo atirado para um buraco
mantem tensos os sentidos
e os arrepios no coração a latejar
espicaçam os olhos já cansados
daqueles que conseguem respirar.

Maúa, Março de 1967

Joaquim Coelho
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... DESGASTE

Com tanta chuva na picada
a natureza corta o caminho à morte
e nós cortamos a direito para o norte
onde fica a Mutamba recatada.

Camuflados encharcados
e as gotas teimosas nos olhos
as botas espicham o lodo
pelos furos do desgaste
que apressa a respiração;

quebrado o operacional silêncio
fica a penúria dos colhões
atrofiados nas virilhas
dos corpos aos trambolhões
neste rasto de tormentos
onde as mochilas encharcadas
desfazem os alimentos
no enredo das enxurradas.

Mutamba dos Macondes, Outubro de 1966

Joaquim Coelho
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.. CAMINHOS RASGADOS

Entre mim e vós há a distância
onde dormem animais sossegados
e há matas com muita guerra
nefastos interesses de ganância
por estes caminhos rasgados
à força das brutais explosões.

Entre mim e vós há um continente
enclausurado entre belezas e degredos
e um rio que chora por mim
quando lhe atiro os meus medos.

É o Messalo que me refresca
nos dias que o visito
e encho o cantil nos rochedos
enquanto expulso um grito
oprimido com os meus segredos.

Porque há distância na terra
da África sempre aprazível,
vivo com os camaradas da guerra
que são uns valentes soldados
entre o rio e a mata de brenha
rasgamos as trevas separados.

Nangade, Agosto de 1967

Joaquim Coelho
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... SOLAVANCOS

Sem saber os caminhos, voei
para o espaço inesperado…
lá longe ecoavam os clamores
e saudade fustigava duramente
o sono do meu abandono
por terras que nunca imaginei.

Fui vivendo aos solavancos
alarmado com os ventos
que arrebatavam as forças
bem dentro da realidade
entre clamores e gemidos
senti bem os açoites, tantos!

Sem fingir que estava alerta
com os companheiros em redor
respirando entre a poeira
que roubava a vida por dentro
e deixava a garganta deserta.

Depois de tanto abandono
a ofender a solidão, em Miteda
ninguém fugia à missão
mais amarga ou azeda
nem reclamava contra a chuva
que molhava até ao coração
em cada picada inundada
onde dormia sem sono
no meio da terra sem dono.

Mueda, Setembro de 1967

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Tempo Presente - Poemas Censurados


..... A CENSURA EM ACÇÃO
.
Decorria o ano de 1972 quando o Poeta Egito Gonçalves, que já conhecia desde o Teatro Experimental do Porto (1958), me alertou para o Concurso de Poemas da Editorial Inova. Da vasta colecção de poemas (estados de alma) escritos durante os tempos da guerra em África, reuni 168 e elaborei um livro que deu entrada no concurso, título de capa "Tempo Presente, poemas da guerra e da paz".

Resposta a um pedido de colaboração numa Antologia de Poesia da Guerra Colonial da UC.

"Porque escrevo para descrever alguns estados de Alma?

Quando acompanhava o poeta Pedro Homem de Melo, na apreciação dos Ranchos Folclóricos que deveriam ser escolhidos para exibição na Televisão, deambulei por diversas terras do interior do Minho e das Beiras, onde fui sensibilizado para escrever algo em forma de poema. As paisagens e o ambiente rural desenvolveram em mim a mística da simplicidade dos camponeses e comecei a escrever versos para os Ranchos Folclóricos. O Professor Pedro Homem de Melo ficava horas e horas sentado à beira dos riachos a meditar; de quando em vez, também escrevia. Foi um tempo de grande aprendizagem, até porque este homem de Afife também foi meu professor.

Os primeiros poemas foram publicados na revista “Notícia” de Angola e com crítica bastante favorável. Outros foram publicados em Moçambique “Notícias da Beira”, “Diário de Moçambique”, onde tive problemas com a Censura; também publiquei no boletim militar “Boina Verde”.

Conhecia o poeta Egito Gonçalves de quando frequentámos o Teatro Experimental do Porto, no tempo em que era dirigido pelo grande António Pedro, entre 1957-60. Tempos depois de regressar da tropa (1969), falei-lhe nos poemas do diária de guerra e logo ele se prestou a colaborar na preparação de um livro com a finalidade de concorrer ao concurso da Editorial Inova. Decorria o ano de 1972. Escolhidos os poemas, organizou-se o livro que foi levado a concurso. Eram 168 poemas, quase todos sobre o tempo da guerra do ultramar. Dias antes da decisão do Júri, soube que a Comissão de Censura interferiu e a PIDE apreendeu o molho dos meus poemas. Nunca mais soube deles, porque ninguém arriscava dar-me informações. Fui aconselhado a ficar quieto. Até o “Prefácio” que abria o livro “Tempo Presente, poemas da guerra e da paz” foi confiscado. Junto fotocópia da capa e o texto do Prefácio.
Veio a revolução do 25 de Abril; tudo começou a mexer nos textos apreendidos. Também fui à procura, tendo encontrado 21 dos 168 poemas. Ao tempo não havia condições de fotocopiar e parte dos rascunhos estavam destruídos. Desanimei na divulgação, mas fui passando a limpo os rascunhos do diário que escrevi nas horas difíceis da vida no mato. Ainda não está tudo pronto, mas deu para organizar cinco livros de poemas e três de texto narrativo do ambiente no meio da guerra. Poemas, são cerca de 340 de Moçambique, mais de 270 de Angola e mais de 350 de Portugal.
Foram escritos por impulso e sem respeitar qualquer regra literária. São a expressão dos estados de alma nos momentos mais delicados das minhas vivências temporais. Há de tudo um pouco, desde ideias filosóficas, deslumbramento de amores, angústias e incertezas no meio da guerra e intervenção social. Quanto a publicação dos livros, nenhuma editora se mostra interessada em o fazer às suas custas.
Atendendo a que a guerra colonial me marcou para o resto da vida, tenho procurado mostrar que houve uma guerra que mexeu com a vida de mais de quatro milhões de bons portugueses (entre militares e respectivas famílias), matou cerca de dez mil, estropiou mais de trinta mil e traumatizou mais de duzentos mil. Enfim, aniquilou os sonhos de muitos homens duma geração. Coisa que tem sido escamoteada e desvirtuada pelos governantes e pelos decisores da sociedade, inclusive, pelos “senhores coronéis e generais” que ao tempo comandavam as tropas.
Grande parte dos escritos conhecidos sobre a guerra colonial são de gente que não teve intervenção directa e, como tal, não sofreu na pele os efeitos da guerra. Em alguns casos, de Manuel Alegre e António Lobo Antunes, aparecem afirmações que são autênticos insultos aos verdadeiros combatentes. Os antigos combatentes estão indignados com as mentiras e o modo redutor e infiel como são tratados. Até a RTP, no seu programa “A Guerra”, deu mais tempo de antena aos comandantes (muitos deles responsáveis por terem ficado abandonados mais de três mil mortos nas terras africanas) e aos mentores das chacinas que atingiram muitos civis portugueses, especialmente em Angola, não dando palavra àqueles que participaram nas mais complicadas operações de guerra. No meu caso, disponibilizei mais de três mil fotografias e prestei depoimento gravado durante 35 minutos e só apresentaram 50 segundos numa questão de reduzido interesse factual. Mas, alguns dos representantes da UPA-FNLA que aparecem na Televisão são bem conhecidos na arte de mandar massacrar inocentes indefesos no Norte de Angola; deviam ter sido julgados por genocídio e crimes de guerra.
Ora, como podem entender, não acredito que a recolha de temas sobre a “Poesia da Guerra Colonial” venha a interessar aos combatentes, já que tudo quanto se fez até ao presente foi para servir de amostragem e deleite duma pseudo-elite intelectual que nada tem feito em prol das necessidades dos combatentes traumatizados pelas vivências no meio da guerra. Mesmo assim, estou disponível para colaborar, desde que a Antologia de poesia da Guerra Colonial seja um instrumento de divulgação em homenagem aos antigos combatentes.

Valongo, Março de 2010

Joaquim Coelho"

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.... P R E F Á C I O

Não é minha intenção tomar atitudes que se possam confundir com a mística do classicismo na arte de escrever, porque a razão que motivou esta variedade de formas expressas não abarca qualquer escola nem sofisma; mas está subordinada a algumas influências correntes da análise retrospectiva da vida. As potencialidades mais notáveis encontrar-se-ão, sobretudo, num realismo luminoso - talvez afectado pelas diversas sensibilidades ocasionais - e na sequência de factores determinantes na busca da verdade e da razão daquela existência.
Compreendo que a poesia deve ser o fulcro entre a imagem apreendida e a verdade que a anima; pelo que, o conhecimento do facto leva o ser à emoção e deixa-o agir no sentido da concepção prática. Embora os poemas que se seguem não toquem assuntos de todos os dias, são concebidos com a necessária noção das realidades e fluíram de vivências temporais em torno dum ambiente de guerra e sensações emotivas que mexem com os mais profundos sentimentos de qualquer ser humano, limitando as elementares pretensões de focagem da Beleza sem deformar as coisas. Ao querer aprofundar com exactidão os mais marcantes factos encontrados num mundo em convulsões - onde cada ser procura furtar-se à sua própria imagem -, talvez me precipite nos caminhos tortuosos do culto da dúvida. Mas sentir-me-ei satisfeito se porventura essa dúvida não assentar na mente esclarecida daqueles que viveram a experiência das situações que procuro interpretar com a mais sincera realidade, apesar das mesmas terem alguns aspectos mais chocantes.
Ao desejar transmitir as imagens que as palavras possam descrever, fui tocado por uma profunda sensação de cumprir, com as melhores das intenções, a determinação de tantos personagens que a miserável guerra destruiu, mutilou ou aniquilou psiquicamente; alguns dos quais pereceram diante dos meus olhos. As provas de repúdio pela condição da guerra são evidentes na evolução da consciência dos militares; mas a contestação frontal sempre foi severamente reprimida pela engrenagem do sistema que limitava a reflexão profunda, mesmo aos mais corajosos:

4)-Agravada para 40 (quarenta) dias de prisão disciplinar agravada a pena aplicada pelo Comandante do BCP21 ao 1º. Cabo graduado Pára-quedistas nº. 138/59 - ..............., “por ter sido um dos organizadores de uma reunião de praças pára-quedistas, onde se discutiram assuntos e se tomaram decisões altamente atentatórias da disciplina e em seguida ter concordado com a apresentação ao Comando de uma exposição anónima onde se focavam as decisões tomadas na reunião efectuada.”
(Extracto da Ordem de Serviço nº. 153 do BCP21 - 1962, Angola)

Embora tenha a experiência de quase uma década na vida militar e vários anos no meio do operariado - factor que pode ser considerado relevante em paralelo com a vivência de muitos soldados “eventuais” que, por se encontrarem temporariamente nas fileiras, não deixaram de ser trabalhadores -, não me vejo possuidor da necessária vocação para interpretar cabalmente todas as cenas nem os remotos sentimentos dos meus companheiros. Porque acredito na reconversão dos conceitos, poderá ser susceptível de distorção a intenção que me conduz pelos caminhos da poesia ao cumprimento dum dever que me conforta.

Difundir a fraternal amizade,
Sem angústia ou tormento;
Sem dor e sem saudade
A perturbar o pensamento.

Entendo que a poesia, despida de contemplações abstractas, ainda transmite algo de reconfortante e mítico, quando ajuda a levantar o denso véu que encobre a nudez da natural condição e nos mostra a verdade da vida ofuscada pela injustiça e pelas degradantes condições de miséria que a reduz.
Sejamos nós mesmos, sem artifícios, a fomentar o renascimento das forças espaciais para a evolução da humanidade, na convicção de que a fraternidade universal é a solução capaz de terminar com todas as carências e misérias que enfermam a sociedade de consumo. Isso só será possível quando perdermos algumas das sensações deste conformismo que sufoca as melhores intenções e nos torna incapazes e medíocres. Para fugir à cobardia da mediocridade, cada um deverá contribuir com uma parte da reposição da justiça na edificação da paz com dignidade, até que esteja consolidada a sociedade fraterna que almejamos. Um esforço sério e a tenacidade de todos podem modificar as estruturas e minorar os efeitos nocivos das contradições desta sociedade. Os efeitos do desvelo que nos torna egoístas só agrava o isolamento dos homens, sufocando as suas naturais faculdades criativas e afectivas - espécie de condicionamento da mente.
As contradições resultantes da prática de um sistema social desumano e corrupto ameaçam a segurança e a paz nesta sociedade onde o consumismo começa a fazer as pessoas regredirem ao seu estado selvagem. E a instabilidade social resultante do desemprego, com graves situações de miséria, amesquinham a dignidade pessoal, e desumanizam os valores da vida, com recalcamentos sobre recalcamentos, até à explosão da raiva e do ódio. As injustiças acumuladas têm origem em situações de repressão camuflada ou descarada que vai marcando os explorados, destruindo as virtudes e os sentimentos superiores como a solidariedade, a compaixão e o amor. E, perdidas as características que dignificam o homem, surge a frustração e o desânimo, aumentando assim a tensão nas relações humanas. Neste declínio aparecem os impulsos emocionais primitivos que corrompem a paz e conduzem à guerra e à desagregação de todos os valores.
No decorrer das guerras do ultramar, há situações de perturbação mental e uma espécie de alienação colectiva nos grupos e unidades destacadas no interior das matas ou nos planaltos, resultante do isolamento e esquecimento a que são sujeitas pelo sistema. Mas no seio da maior parte das tropas de intervenção operacional (tropas de elite), também notei diversos indícios de perturbação. Não era estranho a esses sintomas o modo meticuloso e progressivo como o “sistema” cria barreiras de informadores e difunde ideias e factos contraditórios aos reais problemas da guerra - evolução técnica e logística do inimigo, estado de espírito dos militares portugueses perante a carência de meios para evacuação de feridos - e seus efeitos na coesão das tropas. Os exemplos de ocultação da verdade e de propagação dos ideais carunchosos do poder dirigem-se em vários sentidos e por diversas vias, mas sempre com o mesmo fundamento:

“O desvairamento que parece ter-se apossado dos responsáveis pela preservação da civilização ocidental, deixando livre curso à violência e ao aviltamento dos princípios fundamentais da convivência e da própria vida, vai criando um caos, no qual se desenvolvem forças que ameaçam subverter aqueles poucos que, como PORTUGAL, procuram opor-se à avalanche e preservar os princípios sagrados à luz dos quais foi escrita a história Pátria.”
(Extracto da exortação do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea aos militares
em Angola, em 22/12/61).

“... para a uma só voz jurarem defender esses Símbolos Reais da Pátria mais que a própria vida; para, ainda, lado a lado, orarem ao “Senhor Deus dos Exércitos” pelos mortos: por aqueles “Bons e Leais Portugueses” que generosamente tudo sacrificaram e já nenhum louvor podem esperar deste mundo... senão o respeito e veneração de todos nós.”
(Extracto do discurso do Comandante da Base Aérea 9, de Luanda, em 19/6/62).

Os frutos da tenaz resistência contra a adversidade e a alienação encontram-se na corajosa acção libertadora empreendida por muitos militares que contornaram de forma inteligente o emaranhado de engrenagens que suportam o sistema já decadente; e também na personalidade de muitos outros portugueses mais conscientes da força da razão dinamizadora na propagação dos valores da paz como forma de bem universal.
Não foi sem confrontos de ideias e alguns perigos que se atingiram tais objectivos; mas as posições de firmeza contra a hierarquia servil eram motivo de desafio afrontoso cujos reflexos proliferavam como sementes em terra sã. Quantas vezes, para abafar as causas de frustração, ou esquecer a solidão amarga e desgastante, os menos corajosos seguiam pelos caminhos das bebedeiras para se libertarem dos malefícios da engrenagem. Mas, o perigo de confrontos mais amplos continuará neste mundo dito civilizado, enquanto alguns homens sem escrúpulos usarem poderosas armas para satisfazerem as filosofias retrógradas da guerra:

“É pela guerra que Deus exerce os seus julgamentos. É com a espada que castiga os pecadores.” (Velho Testamento).

Fazei a guerra a todos os que não acreditam em Allah.” (Maomet).

A guerra faz parte e completa a harmonia universal criada por Deus. Não
aceitar a guerra é ser contra Deus. A guerra é obra de Deus.”

(Teoria Teológica).

Em vez da filosofia da Paz:

“A guerra é uma manifestação de loucura.” (Erasmo).

“... todas as guerras têm o mesmo objectivo: roubar.” (Voltaire).

Podem suportar-se muitos males por amor à paz, mas se a escravatura e a barbárie são impostas em nome da paz, então essa paz será para o homem a pior das misérias.” (Spinoza).

Talvez seja necessário ultrapassar os estreitos limites do nosso horizonte e procurar a grande paz, a solução definitiva, a harmonia total...”. (Renan).

Para os que ainda estão sãos e que sabem amar os momentos de consentida solidão, há o deleite de pensar... e a reflexão estabelecerá a ponte até à escala de valores universais que devemos defender sem cair na frivolidade - equilíbrio harmonioso das vontades.

Porto, 17 de Março de 1973
O Autor,

Joaquim Coelho

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... TERRA MORTA

O sol inclina-se para além…
no mar azulado, do Quanza
e eu continuo aqui
á espera do destino…

desterrado para o norte
vou sem rota…
onde se enfrenta a morte!
O avião aguarda que eu entre
digo adeus… a nada
à terra morta!

Notícias… ficarão no mato
perdidas no seu recato…
lá não espero cartas
nem palavras de amor
nem carinhos doces…
conto com dias de dor.
Ah! Se tu lá fosses!

És forte e aguentas
esta ausência da ternura
que nos anima a vida…
eu vou amargar
a tristeza e a nostalgia
de quem dorme no capim
onde não chega mais nada
senão um ruído de metralha
um rugir de folhas secas
ou as garras de um abutre
com seu grito de terror!

Qualquer dia… ou noite
sem cacimbo
eu hei-de voltar
e terei com mais fervor
o teu corpo para afagar
e os teus carinhos
… muito amor.

Luanda, Março de 1962

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... AEROGRAMA

Minha mãe… minha ventura
porque não sonhaste esta guerra
os dias de ódio e os espinhos
neste tempo de loucura
que alastra pela terra…
estão longe os lindos caminhos
que me ensinaste a percorrer
para saborear outro viver.

Porque me geraste dolente
para este mundo ruim
onde vivo descontente?
Sinto-me triste e perdido
sem encontrar o lugar
do destino prometido
onde me possa acalentar.

Minha mãe… minha afeição
porque não sonhaste esta guerra
nem os ódios que ela tem
nem os espinhos…
da vida nestes caminhos?

Não é esta a vida que ensinaste
ao teu filho primogénito…
se os deuses me dessem outra vida
antes queria morrer, para nascer
sem dores nem o sofrimento,
porque te vejo a padecer
com a angústia de cada momento.

Nacala, Junho de 1966

Joaquim Coelho

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