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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Poemas dos Tempos - Moçambique 68

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       TERMINUS

Foi numa noite infernal
quando procurávamos o norte
após o sol de raios ardentes,
um ataque certeiro e fatal
marcou encontro com a morte.

Reagimos e cerramos os dentes
contra a desdita da metralha
vinda dos males do mundo,
lutamos firmes e persistentes
até à derradeira mortalha.

Com o desastre veio a peste…
os corpos já decompostos
e um cheiro nauseabundo
atirou-nos às picadas de leste
com um desgosto profundo.

Em movimentos apressados
tento arrancá-los à desventura,
mas a carne apodrece na terra
dentro duma austera sepultura
cavada no meio da guerra.
    
  Mutamba dos Macondes, Março  de 1966
Joaquim Coelho





         CLANDESTINO

Nenhum sonho apaga a memória
na lucidez dos dias tristes
as minhas dores atravessam a noite
à procura da pátria-mãe...
esquecida dos corpos despedaçados
que queremos resgatados.

Mas hei-de vencer a distância
embalado nas ondas do progresso
neste mundo cheio de traços
onde me empenho no regresso
com um navio cheio de abraços.

Mesmo que as rotas se percam
hei-de encontrar outros caminhos
para levar os que ficam sozinhos;
      nem que o percurso
         incerto, longínquo,
seja clandestino, nesta terra
não deixarei esquecidos
os que morreram na guerra.

Sem os sonhos do desatino
até vou mostrar ao mundo
as razões da má sorte…
muita terra ensanguentada
e os encontros com a morte!

Jamais se apagarão
as causas da nobre missão
de lembrar o que se esquece
neste cruzamento do destino…
eu só quero acreditar no sonho
e recuperar o corpo que apodrece
na solidão do sertão medonho
onde chorei como um menino.


           Nangololo, Setembro de 1967
    Joaquim Coelho
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    SONHOS FLUTUANTES

Hoje acordei perdido no sonho
em que respiravas ofegante,
com uma sensação deliciosa
a excitar-me para flutuar
por cima da púbis airosa.

Inundavas o enlevado sonho
com um arrebatamento tal
que me sentia perdido
e nas entranhas naufragado,
sufocavas-me quando perdi
o fio desse delicioso frémito
que me deixa desconcertado...

À minha frente a lua renasce
nos olhos tenho o labirinto
onde mergulho a emoção
do entusiasmo que sinto
ao perceber que tens no olhar  
o fascínio mais forte que o luar!

     Beira, Moçambique, Abril de 1967
              Joaquim Coelho
 .
 .

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Poemas dos Tempos - Moçambique 67

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     VENTOS NOVOS

Não pedi guerras nem matanças
nas florestas onde as andanças
são o desconforto incessante
destes climas tropicais
a tolher o valor dos ideais.

As curvas dos trilhos e das picadas
mostram  sinais que amedrontam
quando as mortíferas emboscadas
deixam rastos de desgraça
nos combatentes que as defrontam
em cada momento que embaraça.

As nossas forças são a razão
do sofrimento que atormenta
a realidade da convicção
que os ideais dos novos ventos
sopram na direcção sacrossanta
dando vida aos pensamentos
que nos saltam da garganta.

        Diaca, Setembro de 1967

Joaquim Coelho
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       LÁGRIMAS FURTIVAS

Na vibração doce e harmoniosa
as saudades revivem o esplendor
sem tormentos tristes de dor
em cada noite silenciosa.

Um sono longínquo, profundo,
no mundo angelical do pranto
     que és tu nesta saudade
dos versos suaves que te canto
com a simplicidade dum menino
que enfrenta as torrentes esquivas
neste mar picado com o destino
de vida ausente e lágrimas furtivas!

São poucos os dias… e os sonhos
cruzam-se na mesma palma
coberta de tormentos e nostalgias
ferindo a nossa própria alma…
não sei se vou sentir as alegrias
do pensamento sacrossanto
que leve as lágrimas furtivas
para longe deste meu pranto!

         Macomia, Abril de 1966
Joaquim Coelho



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         BLUSA SOLTA

Acordei alegre p'ra vida
e o coração todo se ufana
a pensar em ti Mariana...

estejas tu onde estiveres
hei-de encontrar os diamantes
que trazes junto ao peito
onde misturas as químicas
dos perfumados prazeres...

e os corpos riscando o fogo
numa imagem concertada
que me oferece o abrigo
dentro da blusa desapertada 
       escondido nessa sombra
ponho as mãos cheias de amor
no coração de sentinela
que se abre com fervor
como se fosse uma janela.

        Beira, Março de 1968

Joaquim Coelho
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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Poemas dos Tempos - Moçambique 66

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        CERRAR OS DENTES

Caminhar com as pernas a tremer
neste calvário de mochila às costas:
onde todos os sonhos se desmoronam
por entre as veredas percorridas…

a vontade não resiste ao impulso
do protesto contra as diatribes
que nos atiram para as estevas
onde os corpos perdem a seiva
e o sangue derramado nas matas
salpica de vermelho o capim.

O coração a pulsar atordoado
e o fato sujo e ensanguentado
anunciam o calor que esmorece
a vontade de cerrar os dentes
para lutar com o corpo cansado
e mostrar a força dos valentes
que baixam à terra sem a dignidade
dos heróis do tempo recusado
para descansar até à eternidade!

        Nangade, Setembro de 1967
Joaquim Coelho


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         A PÁTRIA

A Pátria são as aldeias de gente pura,
onde vivem nossos avós,  vida dura...
E tu, mancebo que trabalhas e suas,
és o cerne desta Pátria gloriosa;
as minhas razões são iguais às tuas
para acabar com a escumalha tenebrosa.

A Pátria somos nós, os combatentes
embrenhados nas matas, descontentes,
portadores das cores da bandeira...
com picaretas ou armas na mão,
vamos fazer a emboscada derradeira
antes que nos arranquem o coração!

A minha Pátria é todo esse Povo
protagonista dum mundo novo!
É também um ideal com a dignidade
que defendemos no meio da floresta;
contra os usurpadores da liberdade
saberemos defender o que nos resta.

Somos nós, os portadores da semente,
os escolhidos para alcançar a vitória!
Cada emboscada é sempre diferente
se a razão fecunda a nossa memória.

Porque a vida é tudo quanto temos
nesta África onde padecemos,
vamos dignificar a nossa juventude
sem dar tréguas à cobardia.
O esforço e a vontade têm a virtude
de enaltecer a Pátria em cada dia.

          Chai, Maio de 1966   

Joaquim Coelho  

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      DESENCANTO

Hoje esperava uma carta
que não chegou.
A noite escureceu o meu tédio
e a espera resultou!

Consegui ver nos teus olhos
o brilho que tens na alma;
assim nasce dentro de mim
a energia que me dá o equilíbrio:
a força da vida, embora fraca,
liberta e causa dor
mas regenera a alma
para sentires o grito da revolta
que tenho dentro,
e a força forte, capaz de lutar
até à libertação e terminar
toda a condição da guerra
que aniquila os corpos
e desfaz os valores,
oprime e veda os olhos
nublando as mentes
que se querem transparentes.

O desencanto dos amantes
provoca uma atitude possessiva
quando o cansaço é um deserto
sem conteúdo espiritual…
enquanto espero, tudo acerto
para começar de novo o ritual.

        Marrupa, Janeiro de 1967

Joaquim Coelho
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