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sábado, 26 de junho de 2010

Poemas do Tempo da Guerra 14

.. CONTRASTES DA GUERRA
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Caminhamos nas matas agrestes
com as fardas esfarrapadas
o corpo empastado nas poeiras
que absorvem as gotas de suor
os pés com bolhas profundas
sem pão e sem nutrientes
bebendo nas poças imundas
restos das águas apodrecidas
que deixam marcas nos dentes.

Nas esplanadas mais vistosas
deliciam-se os senhores da guerra
nos bem servidos banquetes
a transbordar de bebidas
em brindes com gestos formais
aperitivos de corpos enfeitados
nas danças de contorções sensuais.

Entre as brenhas e os trilhos
há homens a sofrer os reveses
na lutar contra o aniquilamento
onde os feridos ficam cadáveres
estendidos no chão de Nangade
em espera de lugares recatados
na lonjura do planalto de Mueda
no lugar onde são enterrados.

Mas, nas savanas mais a sul
o lazer dos mandantes da guerra,
tem os helicópteros desviados
das suas missões rotineiras,
não socorrem os caídos por terra
por causa das brincadeiras
em campanha de caça e veraneio
e o gozo com férias pelo meio!

Os combatentes já deprimidos
sentem-se abandonados e tristes
mas ficam com a dor e o luar
e ouvem os pássaros em surdina…
animam-se com a força de lutar
para mudar o rumo da sina!

Nangade, Maio de 1966
Joaquim Coelho
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.. RASGAR O TEMPO

Eu não consigo rasgar o tempo
que marca o meu consciente.

Sinto o fogo da paixão à liberdade
e o rumo da razão desta gente;
mas não posso mudar as ideias
nem remover esta ansiedade
ainda atada às velhas peias...

Não posso recusar o sol refulgente
nem as estrelas que alumiam o sonho
nos olhos de cada criança inocente,
onde a fome, pesadelo medonho,
sem esperança na piedade adormecida
para alimentar as migalhas de vida.

Resguardo a memória nos versos
que o voo rotineiro fermenta...

Os ecos do protesto dispersos
nas ordens que a vida enfrenta
jamais me obrigarão à cobardia
de abandonar a razão em fantasia.

Aqui no planalto, centro da guerra,
sinto os pés a resvalar p’ra terra!

Miteda, 28-07-66
Joaquim Coelho
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.. ESTILHAÇOS BRUTOS

Hoje ficaste limitado no tempo da tua vida,
amigo trespassado pelos estilhaços brutos.
Só te resta descer à terra silenciosa;
pois o teu corpo em contratempo,
já se despediu desta terra misteriosa.

Tudo o que se procura está no tempo,
na sua consequente naturalidade.
Nada se modifica nas casernas,
e mesmo o sentimento fica siderado
como se fossem homens das cavernas.

Alguns fazem um esforço abnegado,
para combater o velho bigotismo
e acabar com a consentida cegueira
dos louvores ao mais aprumado...
perdida a recta intenção do cinismo
só falta acabar a cósmica pasmaceira.

Os ritos castrenses causam inquietação:
a continuidade das cerimónias dengosas
e as lamechas impúdicas e chorosas,
por quem a morte não teve compaixão.

Mutamba, Abril de 1966
Joaquim Coelho
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... DEVANEIOS NO ÍNDICO

Hoje olhei o Índico transparente
apeteceu-me
procurar as coordenadas do teu coração
apontar no mapa, indiferente,
pareceu-me
vislumbrar o caminho na tua direcção.

Já Mocímboa fica no horizonte
distante
e a tua formosa imagem se reflecte
no céu que fica de fronte
equidistante
do caminho de Mueda, que se repete.

Divagando, vou pintando a alma
multicolor
para que o tempo me seja breve
com suaves tons de calma
amor
a condizer com o que se escreve.

Diaca, Outubro de 1966
Joaquim Coelho

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